Para muitos juristas, causou perplexidade o parecer da lavra do procurador
regional da República, Manoel Pastana, nos autos de
Habeas Corpus em
que se discutia a liberdade de executivos presos em decorrência da operação
"lava jato", em que se defendia a suposta prisão de executivos também pelo fato
da “
segregação influenciá-los na vontade de colaborar na apuração de
responsabilidade, o que tem se mostrado bastante fértil nos últimos
tempos”.
Referido procurador, na realidade, apenas teve a coragem de escrever, com
todas as letras, aquilo que alguns membros da magistratura e do Ministério
Público, que atuam nas Varas da Infância e Juventude de São Paulo, pensam e
fazem, abertamente. Em referidas Varas, essa prática é diária.
Em outras palavras, crianças e adolescentes presos em São Paulo são
abertamente coagidos a confessarem delitos. E o pior: por juízes de Direito e
promotores de Justiça. Funciona da seguinte maneira:
O adolescente, primário, é preso em flagrante. Sua internação provisória é
determinada em despacho absolutamente padrão, principalmente se o fato em tese
praticado for abstratamente grave (roubo, tráfico, etc.). O promotor de Justiça
elabora uma representação contra o adolescente, e é designada uma data para
audiência de apresentação, na qual podem comparecer o adolescente e seus
representantes legais. Até a audiência, a criança ou adolescente ficam
internados provisoriamente.
Nessa audiência, negocia-se livremente a liberdade do adolescente:
Se o adolescente confessar, o Ministério Público desiste de produzir outras
provas. A defesa precisa concordar. Se o “acordo” for realizado, imediatamente o
adolescente é sentenciado ao cumprimento de qualquer medida diferente da
internação e, no mesmo dia, sai da Fundação Casa.
Se não confessar, o Ministério Público requer a manutenção da internação
provisória, o juiz mantém o adolescente internado e designa data para audiência
em continuação.
E isso não é feito às escondidas. É tudo aberto mesmo, completamente às
claras
2. Em audiência, é tudo
explicitado. “Doutor, se o cliente do senhor confessar, já sai hoje. Isso mesmo,
janta em casa. Se não, é só aguardar a data da audiência, preso”.
A prática é injustificável. Se o promotor de Justiça e o juiz sabem que o
adolescente, se for condenado, não precisará ficar internado (tanto que
concordam com sua liberdade se confessar), por que mesmo interná-lo
provisoriamente? Para diminuir o trabalho?
Claro, porque muito embora a súmula 342 do Superior Tribunal de Justiça,
determine expressamente que “no procedimento para aplicação de medida
sócio-educativa, é nula a desistência de outras provas em face da confissão do
adolescente”, as Varas da Infância de São Paulo não dão a mínima para isso.
Confessou? Liberdade assistida para o adolescente e processo arquivado, sem a
produção de qualquer outra prova. Apenas “sobra” a fiscalização do cumprimento
da pena. Não confessou e, portanto, gerará trabalho? Fique preso até tentar
provar sua inocência.
A prática funciona. Gustavo é um adolescente que defendo graciosamente,
acusado de roubo de um caminhão. Na delegacia, formalizou-se que o motorista do
caminhão e seu ajudante declararam que reconheciam o Gustavo, sem sombra de
dúvidas, como um dos autores do roubo. Ao saírem da delegacia e descobrirem que
Gustavo estava “preso”, as duas vítimas procuraram os familiares de Gustavo para
dizerem que, pelo contrário, não o tinham reconhecido. As duas vítimas
declararam isso por escrito, reconheceram suas firmas em cartório, e entregaram
as declarações aos familiares de Gustavo.
Mesmo com as declarações juntadas aos autos, o juiz manteve sua internação
provisória. Para piorar, em audiência de apresentação, ocorrida 28 dias após sua
prisão, veio a extorsiva proposta: se confessasse, e a acusação e a defesa
expressamente desistissem de todas as outras provas, o juiz já sentenciaria
Gustavo a uma liberdade assistida e, no mesmo dia, Gustavo iria para casa. Se
não confessasse e quisesse tentar provar sua inocência, não haveria nenhum
problema. Seria marcada nova audiência, onde as provas poderiam ser produzidas
sob o crivo do contraditório. Até lá, no entanto, aguardaria internado na
Fundação Casa.
Isso, por incrível que pareça, foi dito abertamente tanto pelo membro do
Ministério Público quanto pelo magistrado.
Gustavo, chorando muito, confessou. Ao menos formalmente. Porque ele, seus
familiares, seus advogados e até as vítimas, sabem que ele é inocente. Confessou
para ganhar as ruas. E foi coagido para isso.
FONTE: http://www.conjur.com.br/2015-fev-10/marcelo-feller-prender-confessar-rotina-varas-infancia
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