Da periferia ao
centro: cultura e política em tempos pós-modernos
Por: Celso Frederico
I - No mês de fevereiro
de 2013, a revista Carta Capital
publicou diversas matérias sobre cultura, mais precisamente sobre o chamado
“vazio cultural”, que seria, segundo o diagnóstico da revista, a característica
definidora do tempo presente.
O fio condutor da
reportagem é a relação entre os ciclos da economia brasileira e as
manifestações culturais. Três períodos são destacados.
O primeiro, que se inicia
com a revolução de 30, trouxe consigo um conjunto de pensadores com
interpretações relevantes sobre o Brasil: Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto
Freyre, Caio Prado Jr. Na literatura, a centralização federativa provocou uma
reação expressa no romance social, revelando autores como Jorge Amado, Raquel
de Queiroz e, principalmente, Graciliano Ramos. A música popular revelou Ary
Barroso, Dorival Caymmi e tantos outros mestres.
Um segundo ciclo, inicia-se
nos anos JK e se estende até 68. É um momento de modernização capitalista e
desenvolvimento industrial, que foi acompanhado, no plano cultural, pelo
surgimento do cinema novo, do teatro de Arena e do teatro Oficina, do CPC da
UNE, da arquitetura de Oscar Niemeyer, da bossa-nova e dos compositores da MPB
(como Chico, Milton, Edu Lobo etc.) e do tropicalismo.
E hoje? Depois de 12 anos
da era Lula, as políticas de inclusão social e de incentivo à educação e à
cultura, o que se pode dizer? O tom geral da revista é de desânimo: estamos
vivendo um vazio cultural. A superestrutura caminha vagarosamente e parece não
querer acompanhar o desenvolvimento social...
Essa mesma percepção acompanha
muitos estudantes que se voltam para o passado com olhos nostálgicos, deixando
transparecer que eles prefeririam ter nascido noutros tempos, quando as coisas
importantes aconteciam...
De fato, toda a
movimentação cultural da década de 60 gravitou em torno do público estudantil e
da classe média escolarizada. Esse segmento conheceu um vertiginoso
crescimento. Marcelo Ridenti chamou a atenção para esse fato:
- “Dados do MEC apontam
que há hoje cerca de 7 milhões de universitários. O acesso ao ensino superior
praticamente dobrou em uma década. Em 2000, eram admitidos anualmente 900 mil
calouros. Em 2011, quase 1,7 milhão. Dois terço no ensino privado. A título de
comparação, tome-se a década das manifestações estudantis. Em 1960, havia 35.
909 vagas no ensino superior, número que saltou para 57. 342 em 1964, ano do
golpe de Estado, chegando a 89. 582 no tempo das revoltas de 1968, a maioria no
ensino público. Em termos absolutos, a evolução foi enorme. Não obstante,
apenas 15% dos brasileiros com idade de estar na faculdade cursam o ensino
superior” [1] .
Dados eloquentes que, contudo,
não tiveram reflexos significativos no campo cultural. Mas, as manifestações
culturais surpreendentemente apareceram na outra ponta: entre os 85% dos jovens
conhecidos como “nem nem” – aqueles que não estão nem na universidade e nem no
mercado de trabalho formal.
Esses novos protagonistas
habitam um território de localização geográfica imprecisa, que passou a ser
designado pela polissêmica palavra periferia. Esta é a novidade que nega o
propalado “vazio cultural”, diagnóstico que revela uma concepção restrita do
que se entende por cultura [2].
II - Os bairros
populares, situados às margens da cidade, não eram chamados de periferia. O
batismo ocorreu inicialmente na sociologia urbana para designar um espaço de
carência, marginalidade, violência e segregação. Daí o termo foi adotado pelos
movimentos culturais para, em seguida, ser incorporado pelas políticas públicas
que visam à inclusão social – inclusão, diga-se, restrita à participação no
mercado de bens de consumo. Ultimamente, a eterna sanguessuga, a indústria de
entretenimento, passou a enfocar a periferia em filmes, novelas, anúncios
publicitários etc.
A publicização do termo
periferia deu ensejo, assim, à sua apropriação por diferentes campos
discursivos que buscavam, cada qual a seu modo, cristalizar um significado,
conferir-lhe um conteúdo. Esse esforço diferenciado de ressignificação da
palavra periferia faz lembrar Bakhtin que via no signo linguístico “a arena da
luta de classes”.
As várias significações
possíveis, contudo, passaram a existir graças à explosão cultural iniciada a
partir da década de 1990 que deu visibilidade a um processo em curso.
A década de 80 foi
marcada por uma intensa movimentação social. Enquanto o mundo padecia dos
efeitos do neoliberalismo e da reestruturação produtiva (desmantelamento dos
direitos trabalhistas, crise do sindicalismo etc.), o Brasil atravessava um
momento de ascenso do movimento popular, com a formação das centrais operárias,
do Movimento Sem-Terra, da legalização dos partidos de esquerda – processo que
culminou na Constituinte Cidadã, em 1988.
Nos anos 90, entretanto, a
ofensiva neoliberal fortalecida pela desagregação do bloco comunista, chegou
finalmente ao Brasil. A crise social e o enfraquecimento do movimento operário foi
acompanhado da guinada “pragmática” do Partido dos Trabalhadores e da
desmobilização das Comunidades Eclesiais de Base. Na cidade de São Paulo, a
administração Paulo Maluf, privilegiando o transporte individual e a
consequente construção de avenidas e viadutos, deixou a periferia abandonada. A
concentração de renda, de um lado, favoreceu o surgimento de condomínios
fechados e, de outro, a crescente favelização.
Os resultados sociais
logo se fizeram sentir na periferia, retratada pelos jornais como o lugar do
tráfico de drogas, da violência policial e da degradação das condições de vida.
Mas, foi justamente na década de 90 que a periferia conheceu uma surpreendente
floração cultural.
Uma importante análise
foi realizada por Tiarajú Pablo D’Andrea. Morador da periferia e participante
ativo de movimentos culturais, realizou uma notável pesquisa em que aliou a sua
vivência a uma refinada reflexão sociológica [3]. A resposta à crise social, segundo ele, expressou-se
nos diversos movimentos culturais: a literatura marginal [4], o
teatro, as Comunidades do Samba, os saraus, os cineclubes, as produções
audiovisuais e, principalmente, o Hip-Hop, que tem o rap como expressão musical
(além do breaking, na dança, e o grafite, nas artes plásticas) [5]. Em 2007, durante a Semana de Arte Moderna da
Periferia, Sérgio Vaz leu um manifesto que afirmava: “a arte que liberta não
pode vir da mão que escraviza” [6].
Como consequência da
visibilidade adquirida, as organizações não-governamentais e as políticas
públicas assistencialistas passaram a financiar as atividades culturais, por
acreditarem ser esta uma saída de emergência, a possibilidade de escape para
manter os jovens longe da criminalidade[7]. Esta
aposta no apaziguamento das contradições sociais contou também com a contribuição
de empresas privadas adeptas do “discurso empreendedorista”.
A ponta de lança da
ofensiva cultural dos anos 90 foram os Racionais
M C ’s, o grupo de rap que melhor expressou a vivência da periferia naquele
momento, tendo obtido um estrondoso sucesso popular, inteiramente construído às
margens da indústria cultural.
Os Racionais, segundo Tiarajú Pablo D’Andrea, conseguiram como ninguém
exprimir o surgimento da nova subjetividade do emergente sujeito periférico. A condição compartilhada gerou um forte sentimento
de orgulho, acompanhado de uma crítica à sociedade que os condenava à
segregação. Trata-se da formação de uma visão
do mundo, como diria Lucien Goldmann, que compartilha códigos, valores e
que acena para a ação coletiva.
Trilha sonora da periferia,
o rap foi o responsável pela “educação sentimental” dos negros pobres, que
constituem a grande maioria do sujeito
periférico. Mas esta não é uma característica apenas brasileira: em todas
as grandes cidades de nosso mundo globalizado o rap se fez presente para
manifestar sua crítica agressiva à sociedade. Gênero musical novo (mas que
retoma a forma antiquíssima do cantar: o cantochão); baseado no pulso e não na
linha melódica e nas possibilidades do campo harmônico (o que dispensa,
portanto, uma formação musical que vai além da rítmica) – o rap surgiu como a forma musical preferida para a
vocalização dos excluídos. O resultado final é a verborragia martelante que
fustiga os ouvidos e irrita quem procura na música algum bálsamo para o espírito... [8].
Mas, esta é a forma adequada para o novo gênero. Walter Garcia, após estudar a batida
do violão de João Gilberto como doadora da forma
da bossa-nova, voltou-se para o estudo dos Racionais
mostrando como a realidade violenta aparece “em cada recurso poético”, “através
das palavras de rua”, de modo que “a técnica de feitura das obras está
completamente adequada à profundidade das experiências representadas” [9].
Uma das hipóteses mais
interessantes levantadas pela pesquisa de Tiarajú Pablo D’Andrea seria a existência
de “afinidades eletivas” entre manifestações aparentemente opostas como o rap,
a proliferação de seitas evangélicas, o lulismo e o PCC – todos eles movimentos
que explodiram na década de 90 como resposta a uma situação comum. O elemento
unificador seria a existência de uma “gramática moral”, de um código de conduta
– um “procedimento” - forjado para se sobreviver numa situação agônica comum a
todos os sujeitos periféricos.
III) Se realmente se pode
falar numa nova subjetividade, numa “visão do mundo” cuja expressão mais
articulada foi oferecida pelos Racionais,
deve-se também lembrar que uma identidade também se constitui em oposição a
algo. Afinal, quem é o inimigo?
Sobre esse ponto, as opiniões divergem.
Segundo Walter Garcia, a
violência é o que estrutura a narrativa dos Racionais.
Permeando as relações sociais, a violência vivida é expressa de modo igualmente
agressivo: “essa violência generalizada é resultado do sistema capitalista,
responsável pela transformação de tudo (incluindo sentimentos e projetos de
vida) e de todos (“preto, branco, polícia, ladrão”) em mercadoria (com valor
medido em dinheiro); essa universalidade, porém, convive com uma forma de
opressão particular, o preconceito e a segregação racial” [10].
Essa convivência entre o
universal e o particular, contudo, tende a trazer para o primeiro plano a segregação
racial. Este é um fato novo na história da periferia, lembrando que após as
greves ocorridas em fins dos anos 70 a sociologia passou a exaltar a “dignidade
do trabalho” como elemento orientador da ação operária, bem como chamar a
atenção para o teatro operário que acompanhou os movimentos grevistas [11]. A
perspectiva classista, contudo, parece não ter resistido à reestruturação
produtiva que trouxe à baila, em tempos pós-modernos, além da questão racial –
a maldição de origem de nossa sociedade – também a questão juvenil dos “nem
nem”: “... por conta do desemprego e de uma tendência a fragmentação das
categorias do mundo do trabalho, a sociabilidade passa a se dar mais no bairro
ou no universo urbano (deslocamentos, locais de consumo coletivo, áreas de
lazer, etc.) do que propriamente no local de trabalho. As desigualdades
territoriais expressariam melhor elementos étnicos e geracionais que tendiam a
ser escamoteados na identificação trabalhador,
com maiores dificuldades de pensar a questão juvenil e a questão negra” [12].
Resta saber se esta
ênfase no particular é uma passagem enriquecedora para o universal e, portanto,
o caminho para a emancipação do gênero humano, ou um fechamento, algo
semelhante ao “obreirismo” e o “corporativismo” no movimento sindical.
Esta segunda alternativa
é afirmada enfaticamente por Tereza Caldeira: “... nos anos 1990 havia se
consolidado em São Paulo um novo padrão de segregação espacial baseado na
criação de enclaves fortificados e no uso intensivo de sistemas de segurança.
Esse é um padrão de segregação cuja lógica é impor separações. Os novos
movimentos culturais e artísticos que se consolidaram nos anos 1990 expressam
alguns dos paradoxos dessa democracia violenta e dessa cidade segregada. [...].
paradoxalmente, eles também recriam alguns dos termos de sua própria segregação
ao reinventarem simbolicamente a periferia como um gueto isolado, uma imagem
importada do rap norte-americano. Dessa maneira, eles constroem uma postura de
autoreclusão similar às práticas de reclusão das classes altas, e seu protesto
contra a exclusão acaba contribuindo para a reprodução de espaços segregados e
intolerância” [13].
Quanto à intolerância, a autora chama a atenção para o modo preconceituoso como
o rap em geral e os Racionais, em
particular, referem-se à mulher. A “difamação das mulheres”, diz, faz parte da
tendência a “policiar as fronteiras de uma comunidade que se mantém unida na
base da “atitude” e onde não existe tolerância com as diferenças” [14]. As
mulheres, ao contrário dos músicos, procuram ter empregos regulares e, por
isso, são vistas como potencialmente “integradas” – um perigo para a coesão da
comunidade.
Haveria, assim, uma
mudança de postura em relação aos movimentos sociais dos anos 70 e 80: estes,
tendo como referencial o mundo do trabalho, apresentavam-se como uma
“comunidade unida” reivindicando a inclusão na ordem social e a extensão dos
direitos sociais. Já o Hip-Hop, diz a autora, colocou-se fora da esfera
política adotando, assim, uma posição de enclausuramento cujo único direito que
imaginam ter é o direito de liberdade de expressão. Por isso, conclui Tereza
Caldeira, existem “limites para o tipo de comunidade e políticas que eles
possam criar. Eles pensam a periferia como um mundo a parte, algo similar ao
gueto norte-americano, um imaginário que nunca foi utilizado antes no Brasil
para pensar as periferias. Além disso, a democracia não é uma palavra de seu
léxico; é de fato uma noção que pertence ao outro lado, ao lado da sociedade
branca e rica. Suas evocações de justiça não são necessariamente feitas em
termos de cidadania e estado de direito – como era a dos movimentos sociais (e,
nesse sentido, seus clamores por justiça têm, por vezes, uma preocupante
similaridade com o modo como os comandos do crime organizado usam os mesmos
preceitos). É uma ordem moralista, onde não existe lugar para a diferença” [15].
Essas duas posições
antagônicas, que oscilam da afirmação do caráter revolucionário do rap ao
particularismo segregacionista, contêm, cada qual a seu modo, elementos
verdadeiros coexistindo no interior de uma argumentação um tanto peremptória.
Sem muita dificuldade,
percebe-se o ponto de vista, digamos assim, “democrático” de Tereza Caldeira
que gostaria de ver a coexistência pacífica dos opostos numa sociedade
multiculturalista tolerante. Por outro lado, sua crítica certeira ao enclausuramento
aponta para um limite da consciência possível dos sujeitos periféricos.
Uma terceira posição é defendida
por Pablo Nabarrete Bastos. Em sua pesquisa teve o cuidado de discernir três
tendências atuantes no Hip Hop. A primeira delas trabalha com a centralidade da
questão racial; a segunda dedica-se à crítica do capitalismo; a terceira
centra-se na questão cultural e na formação dos jovens para a cidadania. Mas,
mesmo o segmento anti-capitalista repete a visão dualista restrita ao imediato,
como se pode perceber na declaração de um dos integrantes do grupo de rap Sádicos Contra o Sistema: “o sistema pra
nós era a grosso modo: playboy, polícia, governo”. A referência ao governo,
contudo, não impede que muitos grupos atuem em parceria com os departamentos
culturais de prefeituras petistas [16].
Se o envolvimento com
prefeituras e ONG’s traz problemas para movimentos que pretendem ser
anti-capitalistas, a colonização pelo consumo é uma ameaça ainda mais terrível.
A análise excessivamente otimista de Tiarajú Pablo D’Andrea não deixa de
assinalar, a contragosto, as tentações do consumismo envolvendo as últimas
produções dos Racionais, bem como de lembrar
a participação do grupo ao lado de Jorge Ben Jor em uma campanha da Nike. Não
se trata de julgamento moral, pois a questão de fundo é outra e nos remete aos
impasses do dualismo afirmado pela cultura da periferia. Afinal, a parte pode
permanecer isolada do todo? É evidente que a presença da “sociedade inclusiva”,
para usarmos o jargão sociológico, acaba “contaminando” a todos.
A cultura das classes populares não é em si
mesma progressista e nem sempre é original e de boa qualidade. Gramsci quando
falou do folclore usou a expressão “fragmentos indigestos” para assinalar a
coexistência de conteúdos progressistas e reacionários. De modo assemelhado,
encontramos na periferia tanto manifestações regressivas como o recente
fenômeno do “funk da ostentação”, que enaltece as grifes e o dinheiro, como
também aquelas que se pretendem anti-capitalistas.
Sobre o “funk da
ostentação”, que replica a ideologia dominante, é ilustrativa a reportagem
publicada pela revista Época:
- “Vida é ter um Hyundai e uma Hornet/10 mil
para gastar, Rolex e Juliet, canta o paulista MC Danado no funk “Top do
momento”. Para quem não entendeu, ele fala, na ordem, de um carro, uma moto,
dinheiro, um relógio e um par de óculos – um refrão avaliado em R$ 400 mil. Na
plateia do show da Zona Leste, região que concentra bairros populares de São
Paulo, os versos são repetidos aos berros pelas quase 1.000 pessoas presentes.
(...). O público de sexta-feira é jovem, etnicamente diverso e poderia ter ser
descrito em três palavras: “classe C emergente” [17].
O MC
Lon resumiu a ideologia do movimento: “A gente quer ostentar cada vez mais.
Queremos chegar onde os gringos do rap chegaram. Nóis canta ostentação porque pode. É como se fosse a celebração de
uma vitória” [18].
André
Singer, comentando o fenômeno, observou “a autenticidade da manifestação. Tal
como no rap, são vozes da comunidade falando para a comunidade”. Mas, constata,
“os valores expressos são justamente os que emanam da publicidade”. Por isso,
conclui tratar-se de “uma extraordinária vitória do capitalismo” [19].
Esta “invasão” da ideologia dominante na
periferia exige a superação da concepção dualista que separa a sociedade em
brancos e negros; centro e periferia; manos e playboys.
IV) O fechamento em torno
de uma imaginária “comunidade unida” que afirma o dissenso como princípio,
opõe-se, evidentemente, a qualquer possibilidade de integração.
Mas, o que significa,
exatamente, integração? Integração é aceitação conformista da sociedade que
promove a ascensão social da “classe C emergente” através do consumo? É
possível uma integração crítica?
A questão me faz lembrar,
em primeiro lugar, do método Paulo Freire. A integração do analfabeto na
sociedade letrada significava, no caso, tomada de consciência e não um mero
passaporte para o mundo letrado.
Lembro também de um amigo
psicanalista protestando contra aqueles que dizem que a psicanálise procura
integrar o neurótico à sociedade neurótica.
A sociedade, argumentava, é contraditória: integrar significa dar
consciência e permitir que o indivíduo escolha entre valores alternativos.
Considerando a
ambiguidade do termo integração, podemos desdobrar a questão e perguntar: o que
se deve entender por integração cultural?
Hoje, em tempos de
multiculturalismo, há uma tendência ingênua de valorizar acriticamente o
conteúdo revolucionário da efervescência cultural na periferia. Os seus
protagonistas, por sua vez, tendem a afirmar a sua “pureza”, evitando a
“contaminação”: com isso, pensam em manter a “autenticidade” da cultura da
periferia opondo-se radicalmente à cultura praticada no “centro”. O limite
dessa visão consiste em manter o isolamento cultural através da criação de
“parques temáticos”, de segmentos estanques que afirmam o seu particularismo e
negam o diálogo. Negam, portanto, a própria possibilidade de se desenvolverem,
de superarem os seus limites com sua insistência em permanecer no gueto. Essa
posição dual exaspera o antagonismo, mas não aponta para a superação – seja pelo
aprofundamento da democracia, seja pela revolução social. Ela, portanto,
permanece, digamos assim, numa “negação negativa” incapaz de transcender os
limites em que se enclausurou, incapaz de fornecer um projeto universalizante
para a transformação revolucionária da sociedade mercantil.
Um exemplo expressivo desse
particularismo hostil ao diálogo foi patrocinado recentemente por 600 estudantes
de escolas públicas da periferia de Campinas. Esses estudantes, entre 10 a 12
anos de idade, foram contemplados com o programa “Ouvir para crescer”, dedicado
à iniciação musical. Num dos teatros municipais, na Vila Industrial, atores
apresentaram as principais características da linguagem musical. Em seguida, o
grande pianista André Mehmari aproximou-se do piano para tocar uma música de
Ernesto Nazareth. É o crítico literário e músico José Miguel Wisnik quem
informa: “ao começar uma explicação sobre a sua participação, e mesmo antes de
tocar, começou a receber vaias e xingamentos pesados, intensivos, que se
multiplicaram e continuaram ao longo de toda a apresentação”. A presença
“aristocrática” do piano e o estranhamento de classe social, certamente são
fatores que, ao lado da crise da instituição escolar, contribuíram para a
agressividade do público. O crítico concluiu que a reação dos estudantes “faz
parte de uma rede de identidades que se constituem precariamente sobre a
relação rivalitária de indivíduos e grupos cuja afirmação de existência depende
da negação frontal do outro” [20].
Esse exemplo não é um
caso isolado. Recentemente, minha filha participou da tentativa de organizar um
evento cultural na PUC-SP. Na reunião com os colegas, alguém sugeriu chamar
Chico Buarque de Holanda. Um dos presentes, aluno beneficiado pela inclusão na
universidade pelo sistema de cotas, protestou: “Chico Buarque é um
playboyzinho, o pessoal não entende as coisas dele. Temos que chamar alguém que
fale a língua da periferia”.
Esse fechamento pode
ainda ser visto na experiência vivida pelo rapper de São Bernardo, Walter
Limonada, quando se dirigia à biblioteca para devolver alguns livros e
encontrou um amigo que o repreendeu: “esse negócio de livro não é postura de
rapper”. Pablo Nabarrete Bastos, que reproduziu o encontro, acrescentou:
- “Eu já presenciei
jovens do Hip-Hop criticando, até mesmo os seus pares, por querer colocar em
debate e palestras alguma referência da ciência clássica, como Marx, por achar
que era uma atitude pernóstica, ou na linguagem deles: “O Jão tava querendo se crescer pra cima dos mano, não vem querer falar bonito aqui não que aqui é quebrada e o bicho
pega” [21].
Nos três exemplos, a
mesma intolerância de quem quer afirmar agressivamente o seu particularismo e
se recusa a ouvir quem fala uma linguagem “diferente” – uma linguagem de classe
média, branca, culta...
A integração pela cultura, sem dúvida, melhora
a autoestima de setores marginalizados, mas também pode colaborar para acentuar
os irredutíveis particularismos. A integração crítica e revolucionária,
contudo, necessita do esforço universalizante da educação, tanto a escolar como
a política. E a cultura não pode ser o substituto da educação.
No caso dos sujeitos periféricos, a visão dualista
que não se transcende escolhe como inimigo o que é dado imediatamente na
vivência cotidiana: a polícia, o racismo, o playboy, os políticos. Mas aqui podemos
apontar, como já o fez Tereza Caldeira, para uma impertinente “afinidade
eletiva” com a outra parte da sociedade segmentada – aquela que vive em
condomínios fechados. Esse setor também participou da glorificação da cultura,
no momento em que se configurava a passagem da mercantilização da cultura, tal como descrita pela teoria adorniana
da indústria cultural, para a culturalização
da economia. Autores como Debord, já
haviam afirmado que a cultura seria a “mercadoria vedete” da sociedade do
espetáculo. Mais recentemente, Jameson escreveu sobre a “dominante cultural” no
capitalismo tardio.
Na passagem para o século
XXI, começou-se a falar em “economia criativa” para designar um novo e rentável
ramo dos negócios. Em 2008, esse ramo era responsável por 7% do PIB mundial.
Por conta disso, a UNESCO, que até então cuidava da cultura, viu suas
atribuições se encolherem em proveito da Organização Mundial do Comércio e da
União Internacional de Comunicação. Do mesmo modo, a economia da cultura passou
a integrar as políticas públicas. Um documento do MEC, durante o governo FHC,
informava que “cultura é um bom negócio”.
Como negócio, a alta cultura
passou a seguir a lógica especulativa do capital financeiro. Ela deixou de ser
um bem público e passou a ser um ativo financeiro à espera de valorização. Os
bancos e os especuladores do mercado de capitais rapidamente converteram-se aos
encantos da obra de arte, atraídos pelo seu valor de troca em permanente
valorização e não pelo seu valor de uso.
Juntando as pontas, pode-se
ver como a representação caótica da realidade provocada pelo fetichismo
mercantil se expressa nos contrários: a permanência no imediato, no visível
(polícia, playboy), entre os sujeitos
periféricos, e a adoração da aparência sensível (o valor de troca), pela
burguesia dos condomínios fechados em seu recente entusiasmo pela cultura.
V - Entre os dois extremos encontra-se a
classe média branca – aquela que saiu às ruas em junho de 2013. Como a palavra
periferia, classe média é uma expressão ambígua, sujeita às interpretações mais
diferenciadas.
As pesquisas de André
Singer sobre o lulismo e as de Márcio Pochmann sobre a classe média são
referências básicas para se entender o tempo presente [22]. Elas
confluem no diagnóstico: a partir de 2005 a classe média abandonou o lulismo e
aderiu majoritariamente às posições de direita. Esta retirada efetivou-se como
resposta à nova base social que passou a sustentar o lulismo - o
subproletariado beneficiado pelas políticas públicas de inclusão social. Tais
políticas, de viés paternalista, que visam à integração por meio da
participação nos bens de consumo, não atacam a exploração capitalista, mas
apenas procuram diminuir os seus efeitos. De qualquer modo, esse enorme
contingente social passou a garantir as vitórias eleitorais do PT. Sem
mobilização e conscientização, o lulismo consolidou uma hegemonia passiva em
que o centro da ação deixou de ser as relações de produção capitalistas,
passando a concentrar-se no combate à pobreza.
Nesse contexto, a classe
média abandonou o lulismo, migrando para a direita. Um pequeno segmento,
contudo, deslocou-se para os partidos de esquerda. Surpreendentemente, essas
duas vertentes estiveram juntas nas manifestações de junho. A crise de
representação dos partidos e sindicatos abriu o caminho para os protestos [23].
Todos queriam ser
protagonistas; ninguém mais queria ser “representado”. Sem a presença de
partidos – que existem para universalizar as reivindicações – tais
manifestações correm o risco de se dispersar num conjunto infinito de
reivindicações particularistas e, o que é pior, de serem pautadas pelo novo
partido da sociedade do espetáculo: o “partido da mídia”. As manifestações,
organizada pelo Movimento Passe Livre, por estudantes secundaristas e pelos
movimentos de moradia da zona sul, tiveram como canal de divulgação as redes
sociais. Rapidamente, o movimento ganhou adesão e os sujeitos periféricos saíram de seus guetos, o que conferiu à luta
traços de uma revolta popular. Nesse momento, a cobertura ao vivo realizada
pela televisão passou a convocar abertamente o telespectador à participação, ao
mesmo tempo em que procurava imprimir um determinado sentido aos acontecimentos. Como consequência, os links que
comentavam os fatos, retirados da mídia impressa, tiveram uma influência direta
sobre a opinião pública. A revolta contra o aumento da passagem de ônibus, ao
invés de traduzir-se na luta pela estatização das companhias de transporte
público, desviou-se para uma pluralidade de reivindicações menores.
Tais reivindicações foram
levantadas por personagens neófitos em política que inesperadamente entraram em
cena: os “coxinhas”. Enrolados na
bandeira do Brasil, eles portavam cartazes com protestos contra a corrupção – a
antiga bandeira da moralidade que a direita, desde os tempos de Getúlio e,
depois, de Goulart, sempre levantou contra os governos progressistas. Essa
multidão de indivíduos solitários, moldados ideologicamente por décadas de
hegemonia do neoliberalismo, fazia, assim, a sua estreia na vida pública.
“Paradoxo das
consequências”, diria Max Weber: um movimento concebido numa ótica
anticapitalista nas redes sociais seguiu caminhos inesperados e contrários à
orientação inicial. Esse fenômeno obriga à reflexão sobre a internet, distante
das tradicionais interpretações apocalípticas ou integradas. As possibilidades
emancipatórias da internet convivem com sua colonização pelas atividades
comerciais, pela presença agressiva de internautas profissionais a serviço de
partidos, empresas etc., e, hoje sabemos, por uma implacável vigilância por
parte dos Estados Unidos. O ciberativismo, por sua vez, é tanto uma ferramenta
para a ação coletiva como um canal para o individualismo irresponsável. É fácil
clicar um botão e aprovar ou reprovar algo. Veja-se, por exemplo, a luta pela
legalização da maconha: milhares de internautas se comprometeram a participar
de uma manifestação da PUC-SP, mas na hora h apareceram somente alguns gatos
pingados...
O Movimento Passe Livre,
após promover algumas manifestações numericamente inexpressivas, foi
surpreendido em junho com a multidão que foi às ruas. Cabe lembrar que esse
movimento é, de certo modo, herdeiro de 68, especialmente do espírito
libertário que propaga a horizontalidade e critica as organizações políticas tradicionais.
“Centralismo democrático” e “espírito de partido” são considerados, com alguma
razão, princípios burocráticos e autoritários. No Brasil, tal espírito
orientou, por exemplo, a ação de Marighela e da ALN. A ruptura com o
centralismo estimulava a ação autônoma de pequenos grupos não subordinados a
nenhum comando. Uma das formas de ação era a “propaganda armada”: um grupo
invadia uma fábrica, distribuía panfletos e exibia orgulhosamente as armas para
os trabalhadores, acreditando, com isso, estar ensinando o caminho da revolução
– como se a imagem pudesse substituir
o trabalho político de convencimento e conscientização.
O autonomismo
contemporâneo e a espetacularização da política como antídoto à burocracia
apoia-se em autores como Toni Negri, Cornelius Castoriadis, nos teóricos da
autogestão e no neoanarquismo. Esta orientação insere-se no espírito de 68 – em
especial, naquele caldo de cultura que direcionou diversas correntes de
pensamento, como a anti-psiquiatria, o multiculturalismo, algumas tendências
pedagógicas etc., todas elas fazendo da horizontalidade a expressão por
excelência da democracia.
Uma estranha dialética
entre o individual e o coletivo se manifestou nos protestos de junho. Os
indivíduos autônomos e anônimos foram às ruas e se encontraram com seus pares. Formou-se,
assim, para usarmos uma expressão de Hegel, uma “multidão atomística de
indivíduos juntos”. As máscaras do filme V
de Vingança, usadas nas passeatas, encobriram os rostos, mas não aboliram
as individualidades misturadas no coletivo, um coletivo impessoal, uma multidão.
“A
multidão é uma multiplicidade de
singularidades que não pode encontrar unidade
representativa em nenhum sentido”, segundo pensa Antonio Negri [24]. Essas
singularidades em comum seriam um novo sujeito destinado a ocupar o lugar da
antiga classe operária, classe em que as individualidades permaneciam atreladas
à idêntica posição no interior das relações de produção [25]. Nos
tempos pós-modernos de hegemonia do trabalho imaterial teria surgido uma
alternativa à antiga dialética do singular e do geral, do uno e dos múltiplos.
Hegel, astuciosamente, colocara, entre o universal abstrato e as singularidades
soltas, a categoria mediadora da particularidade. A ação direta e o culto do
autonomismo, contudo, se revoltam contra a mediação – seja esta representada
por partidos ou sindicatos, instâncias consideradas “externas” ao soberano
movimento que, em sua imanência, constitui o novo sujeito em luta pela
“democracia absoluta” (conceito que remete a Spinoza). A revolta produz, assim, auto-organização, anti-poder,
resistência, poder constituinte.
A multidão
desponta como uma classe perigosa e “demoníaca”. Negri reporta-se ao Novo Testamento, àquela
parábola em que Jesus foi exorcizar um homem possuído pelo demônio e, ao perguntar
seu nome, obteve como resposta: “Legião é o meu nome, pois somos muitos”. Em
seguida comenta: “Um dos aspectos curiosos e perturbadores dessa parábola é a
confusão gramatical de sujeitos singular e plural. O demoníaco é ao mesmo tempo
“eu” e “nós”. Existe aí uma multidão” [26].
O “demoníaco” deu seu
ares da graça nas manifestações de junho, quando depredações, vandalismo e
roubo de lojas aproximaram grupos punks, Black
Blocs, policiais infiltrados, ladrões e adeptos da ação direta. Não estamos
mais diante da “luta dos contrários”, mas do culto pós-moderno da transgressão,
dos impulsos imediatistas contra a “normatividade”.
Como consequência, o movimento foi
progressivamente se esvaziando. Seus promotores iniciais, pressionados de um
lado pela intervenção da mídia querendo pautar os rumos e, de outro, pela ação
de provocadores de todo tipo, recuaram temerosos.
Uma das análises mais
brilhantes dessas manifestações foi feita por Aton Fon Filho, que apontou a
aproximação das duas vertentes políticas que foram às ruas, direita e esquerda:
“De uma classe média desorganizada, mas sob a influência/hegemonia de linhas
políticas de direita que, em muitos casos, incorporou palavras de ordem da
oposição de esquerda, o que se tem nas ruas é um amálgama mal construído de
boas intenções e generalidades” [27].
A questão da cultura mais
uma vez se fez presente na estetização da política promovida principalmente pelos
“coxinhas” e pelos Black Blocs. Com o
mesmo espírito manifestaram-se os demais participantes, substituindo a questão
social por uma agenda ancorada em abstratos valores éticos, na defesa dos
direitos humanos (moradia, trabalho, saúde, transporte etc.) e, em menor escala,
nos direitos identitários (a luta contra a discriminação de raça, gênero e
orientação sexual) e na legalização do aborto e da maconha. A luta deixou de
ser pelos vinte centavos no preço das passagens para se tornar uma luta por
direitos conduzida pela lógica do espetáculo: “não sendo uma força organizada
cada um ficava responsável por definir o que levava à manifestação. E cada um
sabia que iria possivelmente ser filmado por um dentre os milhares de celulares
e câmeras nas ruas. E iria para a internet, no facebook ou num blog, ou num
site ou no instagram. E poderia ir para os jornais ou para os sites dos
jornais. E para a televisão. Cada um que cuidasse, portanto, do modo como iria
aparecer, como iria ser espetáculo” [28].
Nos desdobramentos que se
seguiram às primeiras manifestações, a palavra final foi dada pelos Black Blocs. Esse grupo de extração
anarquista propõe a ação direta contra os símbolos materiais do capitalismo.
Suas manifestações violentas são dirigidas para a destruição da propriedade
privada e não para a sua socialização. Os símbolos mais visíveis do capitalismo
se tornaram, portanto, o alvo predileto de suas ações.
Uma reportagem da revista Carta Capital explicou a forma de atuação dessa corrente: “O
surgimento de um bloco não é centralizado nem permanente. É o encontro de
indivíduos com propósitos similares, mas nunca coibidos pela coletividade”.
Tais propósitos concentram-se na violência como ação direta, o que confere à
política um “caráter mais estético, espetacular, de intervenção urbana” [29]. Um
ativista entrevistado pela revista declarou: “Nossa sociedade vive permeada por
símbolos. Participar de um Black Blocs é fazer uso deles para quebrar
preconceitos, não só do alvo atacado, mas da ideia de vandalismo. Não há
violência (sic). Há performance”.
Especialistas na área de políticas culturais afirmam que o Black Blocs “é mais do que um movimento, ele é uma estética” (Bruno
Torturra) e que o seu ativismo opera “na interface da política com a arte”
(Pablo Ortellado).
A estetização da política
segue, assim, em direção contrária à politização da arte defendida pelo rap. Os
leitores de Walter Benjamin devem lembrar que a primeira posição era
originalmente defendida pelo fascismo e estranhar sua migração para o
neoanarquismo...
A política como espetáculo
midiático, como “evento”, tem a sua face carnavalesca com os “coxinhas” e “demoníaca”
com os Black Blocs.
Tal política leva à
fragmentação e ao individualismo. Comportamento típico da pequena-burguesia, e
incentivado ao máximo pelo neoliberalismo, o individualismo tem como um dos
seus vetores as “políticas de identidade” centradas nas “irredutíveis”
diferenças. Mas estas são proliferantes, como atesta, entre outros, o movimento
gay – a afirmação identitária desse movimento seguiu a lógica da contínua
divisão expressa nas seguidas siglas que procuram nomear esse contingente
social: GLS, GLBS, GLBT, GLBTS, GLBTTIS etc. Esse movimento progressivo, em que
o uno se dispersa no mal-infinito dos múltiplos, foi chamado por Antônio Flávio
Pierucci de “ciladas da diferença” [30]. De
qualquer modo, continuamos no gueto, destino comum dos manos em sua identidade
territorial, das diferenças proliferantes e dos protestos segmentados.
Na história das lutas
sociais, a reinvindicação da diferença sempre foi uma bandeira conservadora
levantada contra a defesa socialista da igualdade e a ampliação dos direitos
sociais. A esquerda, contrariamente, levantava palavras de ordem
universalizantes, variando do “internacionalismo proletário” ao “nacionalismo”.
Em tempos pós-modernos, a bandeira da diferença mudou de lado e a esquerda
empenhou-se em dar vida ao que Derrida chamava de “o jogo infinito das
diferenças”.
Nas manifestações de
junho de 2013, a reivindicação original do “passe livre” nos transportes,
reivindicação anticapitalista que entendia o transporte como um direito social,
e não uma mercadoria, foi passada para trás pelas palavras de ordem aleatórias
de uma multidão atomizada formada, sobretudo, por indivíduos das classes médias.
A presença desses novos atores trouxe às ruas as reivindicações particularistas
e festivas da “vontade de todos” – a somatória dos interesses particulares que
não deve ser confundida com a rousseauniana “vontade geral”. Essa substituição
de uma pauta unificada por reivindicações esparsas impediu que se atacasse a
essência dos problemas, ficando-se, por assim dizer, na periferia, ou melhor,
em suas manifestações visíveis, cultivando um fazer político performático bem
ao gosto do pós-modernismo, que, no lugar da palavra, da argumentação
persuasiva, prefere o culto da imagem.
Não foi por mero acaso
que a palavra de ordem gritada nas ruas – “vem pra rua, vem!” - tenha replicado
o slogan da propaganda de uma marca
de carros que então era veiculada exaustivamente na televisão. Apropriação
crítica ou adesão irrefletida à linguagem da mercadoria?
Seja como for, ficamos
enredados no campo dominado pela mídia, que não só reflete, mas, sobretudo,
impõe pela manipulação das imagens o simulacro no lugar do real, visando com
isso pautar a conduta dos indivíduos tanto na esfera cultural como na politica.
Estudando a questão urbana, Otília Arantes, reportando-se a David Harvey,
chamou a atenção para a mudança operada: “a substituição pós-moderna do
espetáculo como forma de resistência ou de festa popular revolucionária pelo
espetáculo como forma de controle social” [31].
O que se pode observar em
todos os setores é o triunfo da lógica do capital, do fetichismo da mercadoria
e sua contrapartida: a estetização da política.
O culto das grifes no funk da ostentação ou a crítica abstrata ao
“sistema”, na visão dualista dos rappers - ambos prisioneiros do imediato; o
encantamento súbito de uma burguesia financeirizada pelo valor de troca da obra
de arte, ou a atuação performática dos Black
Blocs que investem contra os odiosos “símbolos visíveis” do capitalismo - complemento
perfeito para as declarações de amor da burguesia ao invólucro da mercadoria, pelas
grifes, pela marca, pelo valor de troca. Assim, consuma-se o espetáculo, a
manifestação sensível da representação caótica de um mundo que parece governado
pelo movimento automático das mercadorias.
Cabe lembrar, a propósito, a contribuição
pioneira de Guy Debord que, em sua crítica ao mundo mercantil, entendia o
espetáculo como sendo o “monopólio da aparência” e, contra ele, reivindicava não
a contestação midiática do espetáculo, mas a “linguagem da contradição”.
RESUMO
As relações entre cultura
e política ganharam novos contornos no Brasil a partir da década de 90. A
explosão cultural da periferia – tendo à frente o rap – expressou-se numa
lógica dualista que dividia a sociedade em brancos e negros, centro e
periferia, “manos” e “playboys”. Essa visão dualista, por sua vez, reflete uma
forma de pensar prisioneira do imediato – no caso, a recusa abstrata do
“sistema”.
O mesmo procedimento pode
ser visto na classe média que foi às ruas nas jornadas de junho, em 2013.
Conduzida pela lógica do espetáculo e manipulada pela mídia, as jornadas também
expressaram, na outra ponta da sociedade, uma estetização da política que
reproduzia, a seu modo, a permanência no visível, no imediato.
Palavras-chave: cultura, periferia, rap, jornadas de junho, mídia.
Celso Frederico é
professor da ECA-USP e autor, entre outros livros, de Sociologia da cultura. Lucien Goldmann e os debates do século XX
(Cortez: 2006); O jovem Marx
(Expressão Popular, 2009) e A arte no mundo
dos homens. O itinerário de Lukács (Expressão Popular: 2013).
[1] .
Marcelo Ridenti, “Que juventude é essa? In
Folha de São Paulo, 23-06-2013.
[2] . Para
uma visão ampliada das várias manifestações culturais, ver Alfredo Bosi,
“Cultura brasileira e culturas brasileiras, in
Dialética da colonização (São Paulo: Companhia das Letras, 1994).
[3]
. Tiarajú Pablo D’Andrea, A formação dos
sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo. USP,
Programa de Pós-Graduação em Sociologia, 2013.
[4] .
Veja-se a respeito, Érika Peçanha do Nascimento, “Literatura marginal”: os escritos da periferia entram em cena.
(Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
2006).
[5] .Cf. A pesquisa em andamento de Lívia de
Tommasi nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, cujos primeiros
resultados foram apresentados no ensaio “Culturas de periferia: entre o
mercado, os dispositivos de gestão e o
agir político”, in Política &
Sociedade, vol. 2, número 23, 2013.
[6] . O
manifesto pode ser lido/visto no You Tube.
[7]
. Sobre a ação das ONG’s, ver Paulo Eduardo Arantes, “Esquerda e direita no
espelho das ONG’s”, in Zero à esquerda (São
Paulo: Conrad Livros, 2004).
[8].
Retomando observações de José Miguel Wisnik sobre a função do refrão na música
popular– e o rap raramente tem refrão - Tiarajú
P. D’Andrea escreveu: “Música sem refrão não canaliza tensões. O refrão é o
momento da canção onde as partes encontram o todo. (...). O refrão é,
textualmente, a síntese das particularidades expostas nas estrofes. Por isso
mesmo, o refrão é sempre onde entram as principais ideias da canção. O refrão
anuncia o que as estrofes irão dirimir, investigar, exemplificar. O refrão é a
síntese. (...) o refrão é o alívio das tensões geradas pelas estrofes, no
contínuo musicológico tensão/distensão, assim como nossa respiração”. Já o rap,
“ao não ter refrão, é pura tensão. Tensão sem distensão. Tensão que não se
resolve. Incômodo que não se acomoda. Escutar um rap é passar 10 minutos com a
respiração suspensa. Não há refrão, não há repouso”. Esta forma musical,
conclui, é “a materialização musical da expressão “correria”. Quem está na
correria na vida real não tem direito ao repouso. O próprio fraseado longo,
linear e ininterrupto do rap, que não deixa espaço para a respiração, é outro
indicativo de ser a expressão musical de indivíduos sem possibilidade de
descanso” (Op. cit., p.250).
[9]
. Walter Garcia, “Ouvindo Racionais MC’S”, in
Tereza, número 4/5 (USP-Ed. 34: 2003), p. 171.
[10]
. Ob. cit., p. 173.
[11]
. Veja-se, a respeito do teatro, Tin Urbinatti, Peões em cena. Grupo de teatro Forja (São Paulo: Hucitec, 2011).
[12]
. Tiarajú Pablo Garcia, A formação dos
sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo, cit., pp. 154/5.
[13] .
Tereza Pires do Rio Caldeira, “O rap e a cidade”, in Lúcio Kowarick e Eduardo Marques (org.), São Paulo: novos percursos e atores. Sociedade, cultura e política
(São Paulo: 34, 2011), pp. 301/2.
[14]
. Idem, p. 315.
[15]
. Idem, p. 318.
[16] . Pablo
Nabarrete Bastos, “Faces do espelho. Processos de construção de sentidos sobre
o movimento Hip Hop do ABC paulista”, ms., s/d, p. 14.
[17]
. “O funk de ostentação em São Paulo”, in
Época 8/9/2012.
[18]
. Paulo Lima, “Morrer de inveja”, in
Istoé, p.54, número 37, julho 2013.
[19]
. André Singer, “Ostentação”, in Folha de São Paulo, 16/2/2013.
[20]
. José Miguel Wisnik, “Não ouvir”, O Globo,
25/05/2013.
[21] . Pablo
Nabarrete Bastos, Ecos de espelho.
Movimento Hip-Hop no ABC paulista: sociabilidade, intervenção e mediações sociais,
culturais, raciais, comunicacionais e políticas (Dissertação de Mestrado,
ECA-USP, 2008), p. 319.
[22] . André
Singer, Os sentidos do lulismo (São
Paulo: Cia das Letras, 2012); Márcio Pochmann, Nova classe média? (São Paulo: Boitempo, 2012).
[23]. A crise de representação foi vivida de formas
opostas. Os estudantes foram às ruas, mas sem a presença da UNE e dos
diretórios acadêmicos; pouco depois, a burocracia sindical organizou uma
patética manifestação, sem a presença da base operária.
[24]
. Antonio Negri, 5 lições sobre Império
(Rio de Janeiro: DP&A, 2003), p. 43.
[25] . A lógica do ativismo digital é outra: “não é
mais “proletários de todo o mundo, uni-vos!”. É “hackers, dispersem-se, atuem
com autonomia, pelo mundo!”. É a individualidade colaborativa”, segundo a
opinião de Sérgio Abreu num simpósio promovido pela USP. Cf. Bia Barbosa, “Forte,
ativismo digital incomoda mídia, mas sofre ameaças e riscos”, in Revista ADUSP, maio de 2013, p. 75.
[26]
. Cf. Antonio Negri e Michael Hardt, Multidão (Rio de Janeiro: Record, 2005),
p. 186.
[27]
Aton Fon Filho, “A direita sai de casa pela porta da esquerda” (http//:viomundo.com),
p. 7.
[28]
. Idem, p. 8.
[29]
. Cf. Piero Locatelli e William
Viera, “O Black Bloc está na rua”, in
Carta Capital, 21/8/2013, pp. 24-25.
[30]
. Antônio Flávio Pierucci, Ciladas da
diferença (São Paulo: Editora 34, 2000).
[31] . Cf. Otília Arantes, ”Uma estratégia
fatal. A cultura nas novas gestões urbanas”, in Otília Arantes, Carlos Vainer, Ermínia Maricato, A cidade do pensamento único. Desmanchando
consensos (Petrópolis: Vozes, 2000), p. 22; David Harvey, A condição pós-moderna (São Paulo:
Loyola, 1992), pp. 88-92.
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