O silĂȘncio como projeto de poder
Quando Aparecido Alexandre da Silva publica MemĂłrias de um boia-fria a professor, ele nĂŁo apenas registra sua histĂłria de vida — ele resgata sĂ©culos de memĂłrias silenciadas, transformando a escrita em um gesto radical de reparação histĂłrica. Mais que uma autobiografia, o livro se revela um documento polĂtico e pedagĂłgico que rompe com o pacto colonial de invisibilização da experiĂȘncia preta, camponesa e perifĂ©rica no Brasil.
Nas entrelinhas da infĂąncia migrante, analfabeta e empobrecida, emerge a voz de um coletivo que sobreviveu Ă s estruturas do racismo, da exclusĂŁo educacional e da fome. Ao compartilhar sua trajetĂłria, Cido desmascara o mito da meritocracia e ilumina os mecanismos de silenciamento que sustentam as desigualdades sociais no paĂs. Como na alegoria da caverna, evocada por ele prĂłprio, a obra convida o/a leitor/a a reconhecer as sombras que distorcem a realidade — e aponta a educação como possĂvel fresta de luz.
Mas nĂŁo se trata de qualquer educação: Ă© aquela que reconhece, escuta e emancipa. A caminhada de Cido Ă© feita de chĂŁo batido, lavoura ĂĄrida e resistĂȘncia cotidiana — e, por isso mesmo, profundamente polĂtica. Seu relato vai alĂ©m da sequĂȘncia cronolĂłgica dos fatos: constrĂłi uma genealogia da resistĂȘncia preta. O racismo estrutural atravessa as pĂĄginas como um rio subterrĂąneo — ora explĂcito, ora transbordando em castigos, silĂȘncios, humilhaçÔes e pequenas insurgĂȘncias.
Da exclusĂŁo escolar Ă s migraçÔes forçadas, das prĂĄticas religiosas ambĂguas aos traumas da ditadura, MemĂłrias de um boia-fria a professor mapeia com precisĂŁo e sensibilidade o modo como o Brasil se organizou para domesticar e apagar narrativas subalternizadas.
Ă a partir dessa obra que este artigo propĂ”e uma anĂĄlise crĂtica, ancorada em dados atuais e teorias sociais, sobre os mecanismos de silenciamento racial, desigualdade educacional e apagamento histĂłrico que continuam a moldar o paĂs. Reencontrar Cido, neste texto, Ă© tambĂ©m reencontrar um mestre. Fui seu aluno na EJA da Escola Estadual Professora Yolanda Noronha do Nascimento, em SĂŁo Bernardo do Campo — e Ă© com essa escuta de aprendiz, somada Ă vivĂȘncia como educador social e ativista em direitos humanos, que retomo a força ancestral que este livro carrega e transmite.
Linhagens pretas e os donos da memĂłria
A narrativa de Cido começa por onde muitos livros de histĂłria silenciam: o avĂŽ Alexandre de Melo, afrodescendente nascido sob a vigĂȘncia da Lei do Ventre Livre (1871), cuja vida, mesmo apĂłs a abolição formal da escravidĂŁo, permaneceu atrelada Ă fazenda dos antigos senhores. O sobrenome herdado, “de Melo”, jamais foi registrado oficialmente — um gesto calculado de apagamento jurĂdico e simbĂłlico, destinado a impedir qualquer reivindicação de direitos hereditĂĄrios.
O que se transmite ao neto nĂŁo Ă© apenas a memĂłria afetiva de um avĂŽ: Ă© a revelação de como o Brasil pĂłs-abolição manteve pretos/as sob controle por meio de vĂnculos informais e relaçÔes de dependĂȘncia. Essa realidade Ă© o que Abdias do Nascimento definiu como “extermĂnio simbĂłlico da população preta” — um projeto que domesticava corpos pretos por meio da proximidade aparente, mas negava, sistematicamente, cidadania plena.
Na sequĂȘncia dessa linhagem, a figura de Dona Francisca emerge como expressĂŁo encarnada da resistĂȘncia. MĂŁe do autor, ela percorre a pĂ© mais de 60 quilĂŽmetros do sul de Minas ao interior de SĂŁo Paulo, em busca de sobrevivĂȘncia para si e seus filhos/as. Sua migração forçada, tĂpica do sĂ©culo XX, expĂ”e o abandono histĂłrica do Estado para com as populaçÔes pretas e rurais. Mulher preta e analfabeta, Dona Francisca representa uma intersecção de opressĂ”es — mas tambĂ©m a potĂȘncia de uma pedagogia ancestral, feita de afeto, sacrifĂcio e insistĂȘncia.
Mesmo sem saber ler ou escrever, ela compreende a educação como herança legĂtima — e luta para que seus filhos/as acessem aquilo que lhe foi negado. Sua trajetĂłria antecipa o que Paulo Freire chamaria de pedagogia da esperança: um saber nascido da experiĂȘncia, do chĂŁo e da resistĂȘncia silenciosa das mulheres pretas.
A realidade que atravessa essa genealogia ressoa nas estatĂsticas contemporĂąneas. Segundo o IBGE (2022), mais de 56% da população brasileira se autodeclara preta ou parda. No entanto, esse grupo concentra os piores indicadores sociais: sĂŁo maioria entre os analfabetos, os desempregados e os moradores de ĂĄreas sem saneamento bĂĄsico. A herança da escravidĂŁo nĂŁo Ă© apenas histĂłrica ou simbĂłlica — ela estrutura o presente.
Cada dado tem rosto, corpo e nome. E muitos desses nomes, como os da linhagem de Cido, foram silenciados antes mesmo de serem registrados. Em muitos casos, silenciados tambĂ©m pela violĂȘncia: segundo o Atlas da ViolĂȘncia (IPEA, 2023), mais de 77% das pessoas assassinadas no Brasil sĂŁo pretas, o que revela uma polĂtica estrutural de necropolĂtica racial em curso. Escrever sobre eles Ă© inscrever, tambĂ©m, um novo capĂtulo da histĂłria brasileira — um capĂtulo narrado a partir de dentro.
A escola que nunca chegou
A promessa de que a educação Ă© o caminho para a ascensĂŁo social nunca se cumpriu para a maioria da população preta e rural brasileira. Em MemĂłrias de um boia-fria a professor, Aparecido Alexandre da Silva revela como esse direito foi historicamente negado Ă sua famĂlia — nĂŁo por acaso, mas por estrutura.
O pai de Cido decide que sĂł matricularia os filhos/as quando houvesse pelo menos trĂȘs em idade escolar, como se estudar fosse um evento coletivo e excepcional, e nĂŁo um direito individual. A irmĂŁ do meio, Aparecida, permanece analfabeta por nĂŁo ter com quem ir Ă escola. Os irmĂŁos mais velhos, como Maria de Lurdes, abandonam os estudos ainda na infĂąncia para trabalhar na roça desde os sete anos, e no caso dela ajudar tambĂ©m nas tarefas da casa. A lĂłgica produtivista da famĂlia camponesa, aliada Ă ausĂȘncia de polĂticas pĂșblicas, tornava o acesso Ă educação um privilĂ©gio esporĂĄdico — nĂŁo um direito garantido.
Esse padrĂŁo de exclusĂŁo permanece atĂ© hoje. Segundo a PNAD ContĂnua (IBGE, 2023), mais de 70% dos/as jovens de 14 a 29 anos que abandonam a escola no Brasil sĂŁo pretos/as ou pardos/as. A razĂŁo principal segue sendo a mesma de dĂ©cadas atrĂĄs: a necessidade de trabalhar. Para milhares de famĂlias como a de Cido, a escola ainda Ă© luxo, e nĂŁo base da cidadania.
Mesmo quando presente, a escola nĂŁo se mostrava acolhedora. O ambiente era permeado por racismo cotidiano, desigualdades explĂcitas e violĂȘncias sutis. Cido narra que ele e os irmĂŁos/as levavam comida em caldeirĂ”es e revezavam uma Ășnica colher, enquanto os/as colegas brancos/as tinham lancheira, lanche fresco e colher individual. Aprender, para eles/as, era tambĂ©m engolir a vergonha.
O que se desenha Ă© um cenĂĄrio de exclusĂŁo pedagĂłgica mascarada por discursos meritocrĂĄticos. A escola, ausente no campo e seletiva na cidade, funcionava como uma engrenagem de manutenção das desigualdades. Um lugar onde os corpos pretos eram vistos como intrusos e onde a inteligĂȘncia era medida por critĂ©rios raciais e de classe.
O sonho de Dona Francisca — ver os filhos/as estudando, mesmo sem saber ler uma Ășnica palavra — atravessa o livro como um lamento e uma profecia. Sua luta antecipou em dĂ©cadas uma bandeira que ainda hoje precisa ser empunhada: a educação Ă© um direito inegociĂĄvel, e nĂŁo uma concessĂŁo que depende da companhia, da renda ou da geografia.
Racismo estrutural: do campo Ă cidade
Cido aprendeu o que era racismo antes mesmo de saber nomeĂĄ-lo. Ainda criança, sofreu com apelidos pejorativos que ridicularizavam seu corpo e sua cor, foi impedido de brincar, humilhado em pĂșblico — tudo sem entender que o problema nĂŁo estava nele, mas em uma sociedade moldada para negar humanidade Ă infĂąncia preta. Esses episĂłdios, muitas vezes tratados como “brincadeiras” ou “coisas da idade”, sĂŁo, na verdade, liçÔes precoces de exclusĂŁo. Uma pedagogia do abandono que começa no recreio e se prolonga pela vida adulta.
O racismo estrutural nĂŁo tem fronteiras geogrĂĄficas. Ele atua com a mesma brutalidade no campo e na cidade, nas escolas e nas instituiçÔes. As memĂłrias de Cido deixam claro que a migração familiar nĂŁo representou um rompimento com o passado, mas uma continuidade das violĂȘncias em outro cenĂĄrio. A cidade, longe de ser o espaço da civilidade e do progresso, reproduziu — com nova linguagem e novos cĂłdigos — os mesmos mecanismos de exclusĂŁo vividos na zona rural.
Ao recordar a punição injusta sofrida por seu irmĂŁo por brincar com uma bola, Cido nos mostra como os corpos pretos sĂŁo alvos precoces da repressĂŁo. O que se apresenta como “disciplina” na infĂąncia, muitas vezes, se transforma em criminalização na juventude — atĂ© alcançar, tragicamente, o extermĂnio. Segundo o Atlas da ViolĂȘncia (IPEA, 2023), 77,4% das vĂtimas de mortes violentas no Brasil sĂŁo pretas. A cor da pele, no Brasil, define o acesso nĂŁo sĂł Ă escola, ao trabalho e Ă renda — mas tambĂ©m Ă vida.
Esse dado se conecta diretamente ao conceito de necropolĂtica, formulado por Achille Mbembe, segundo o qual determinados grupos sĂŁo tratados pelo Estado como descartĂĄveis. A infĂąncia preta, ao invĂ©s de protegida, Ă© exposta ao abandono, Ă violĂȘncia simbĂłlica e Ă indiferença institucional. O corpo preto nĂŁo Ă© apenas excluĂdo — Ă© combatido.
Mesmo na cidade, o racismo segue operando: disfarçado de piada, de olhar desconfiado, de oportunidade negada. A travessia de Cido entre territĂłrios evidencia que o problema nĂŁo era o lugar — era o sistema. E esse sistema se atualiza, perpetuando desigualdades sob a aparĂȘncia de neutralidade.
As memĂłrias de um boia-fria a professor escancaram, com precisĂŁo e sensibilidade, o fracasso do Estado em proteger suas crianças pretas. A dor de Cido nĂŁo Ă© exceção: Ă© regra. E continua sendo. Enquanto os discursos celebram uma igualdade formal, as estatĂsticas desmentem a realidade vivida — e o silĂȘncio institucional segue tĂŁo gritante quanto a violĂȘncia que ele encobre.
Ditadura, anticomunismo e silenciamentos
A infĂąncia de Cido transcorre sob a sombra de um paĂs mergulhado na ditadura civil-militar. Mas o regime autoritĂĄrio de 1964 nĂŁo se manifestava apenas nas manchetes ou nas prisĂ”es polĂticas — ele tambĂ©m se infiltrava nas casas humildes, nos sermĂ”es religiosos e nas ondas do rĂĄdio. O medo era mĂ©todo. A pedagogia era o castigo. O silĂȘncio, uma exigĂȘncia.
Nas pĂĄginas de MemĂłrias de um boia-fria a professor, esse ambiente opressivo se revela com nitidez. O medo da polĂcia, o pavor do “comunismo”, as ameaças sobre o “inferno” eterno: tudo era usado como instrumento de controle. A violĂȘncia simbĂłlica se confundia com a disciplina familiar. Tapas e puniçÔes vinham “em nome de Deus”, e os radinhos de pilha repetiam, entre hinos e sermĂ”es, a lĂłgica do inimigo interno — seja ele polĂtico ou espiritual.
O conservadorismo religioso, profundamente enraizado nas periferias rurais, operava como braço auxiliar da repressĂŁo. Reforçava o patriarcado, naturalizava a submissĂŁo e interditava o pensamento crĂtico. Mas, paradoxalmente, era tambĂ©m nesse espaço que muitas mulheres pretas encontravam brechas para resistĂȘncia. Dona Francisca e Maria de Lurdes, por exemplo, lideravam terços cantados e articulavam redes de solidariedade entre vizinhas — prĂĄticas que mantinham viva uma ancestralidade coletiva e uma força feminina subterrĂąnea.
Essa ambivalĂȘncia Ă© um dos grandes mĂ©ritos da obra: mostrar que fĂ© e opressĂŁo nĂŁo sĂŁo opostos, mas forças que podem se cruzar, disputar e atĂ© coexistir em um mesmo territĂłrio. A religiosidade popular, muitas vezes capturada pelo moralismo dominante, tambĂ©m servia como escudo, refĂșgio e plataforma de resistĂȘncia silenciosa.
Nesse contexto, a educação aparece como ameaça. A pedagogia libertadora proposta por Paulo Freire, que estimulava a leitura crĂtica do mundo, era vista como subversiva. O que se oferecia Ă s crianças como Cido era o dogma — religioso, polĂtico e moral — para que jamais ousassem sonhar com mudanças. A repressĂŁo nĂŁo era apenas uma polĂtica de Estado: era um projeto de nação, moldado para calar os corpos que pensam, questionam e oram fora da ordem.
Ao reconstituir esse tempo, Cido nĂŁo apenas narra sua infĂąncia: ele denuncia um Brasil que ensinava a obedecer antes de ensinar a pensar. Suas memĂłrias expĂ”em como o autoritarismo nĂŁo começa no DOI-CODI — ele nasce nos lares, nos altares e nas salas de aula onde o medo se impunha como disciplina.
O magistĂ©rio como resistĂȘncia polĂtica
A travessia que transforma Cido de lavrador em professor nĂŁo acontece por acaso, nem por obra do acaso. Ela nasce da persistĂȘncia, da dor e da aposta no impossĂvel. Ao conquistar o direito Ă alfabetização jĂĄ na vida adulta, Cido nĂŁo apenas rompe o ciclo de exclusĂŁo que marcava sua famĂlia — ele devolve ao saber a sua dimensĂŁo mais potente: a de ferramenta polĂtica de transformação.
Seu ingresso no magistĂ©rio Ă© mais do que uma conquista individual. No contexto de MemĂłrias de um boia-fria a professor, tornar-se professor Ă© romper um cerco histĂłrico que tentou silenciar sua voz por geraçÔes. Ă assumir um lugar que, por estrutura, lhe foi negado — e convertĂȘ-lo em plataforma de reexistĂȘncia coletiva.
No ABC Paulista, Cido passa a atuar na formação de professores/as, articulando sua vivĂȘncia camponesa, a memĂłria dos silĂȘncios e a pedagogia libertadora. O diĂĄlogo com Paulo Freire nĂŁo Ă© apenas teĂłrico: Ă© visceral. Ele compreende que ensinar Ă© muito mais do que transmitir conteĂșdos — Ă© escutar, construir vĂnculos, devolver dignidade. Ensinar, para Cido, Ă© resgatar vidas soterradas pela exclusĂŁo.
Essa pedagogia da resistĂȘncia se opĂ”e frontalmente Ă lĂłgica tecnicista e meritocrĂĄtica que ainda domina grande parte das polĂticas educacionais. Enquanto muitos discursos sobre educação se limitam a Ăndices e resultados, Cido aposta no poder das histĂłrias, das experiĂȘncias e dos corpos presentes na sala de aula. Ele forma professores/as, mas tambĂ©m sujeitos crĂticos/as — capazes de questionar, transformar e reinventar o mundo Ă sua volta.
Num paĂs onde o racismo estrutura tambĂ©m o ambiente escolar, a presença de um professor preto que narra sua prĂłpria trajetĂłria rompe com o script tradicional da educação. Cido ensina com suas cicatrizes, com seus passos, com o olhar de quem atravessou a roça e chegou ao quadro preto. Sua autoridade nĂŁo nasce de tĂtulos, mas de vivĂȘncia. E Ă© por isso que ela educa.
O magistĂ©rio, em suas mĂŁos, deixa de ser ocupação — e se transforma em missĂŁo polĂtica. Ă por meio dele que ele planta a palavra onde antes havia silĂȘncio, constrĂłi caminhos onde antes havia muro. A sala de aula, para Cido, Ă© territĂłrio de insurgĂȘncia amorosa — onde se cultiva o que a sociedade insiste em negar: a humanidade plena da população preta, pobre e perifĂ©rica.
Os dados confirmam a denĂșncia: desigualdade tem cor, territĂłrio e herança
As estatĂsticas mais recentes confirmam, com precisĂŁo fria, aquilo que Cido narra com emoção e memĂłria: a desigualdade no Brasil nĂŁo Ă© acidental — ela tem cor, territĂłrio e genealogia. A histĂłria de um boia-fria a professor ganha ainda mais força quando lida Ă luz dos nĂșmeros que atravessam a população preta brasileira atĂ© os dias de hoje.
Segundo o IBGE (2023), cerca de 9,3 milhĂ”es de brasileiros/as permanecem analfabetos/as — e a maioria absoluta pertence Ă população preta com mais de 40 anos. O dado revela que o ciclo de exclusĂŁo que marcou a infĂąncia de Cido nĂŁo se encerrou com sua geração. Ao contrĂĄrio: ele se reproduz, atualiza e consolida a marginalização educacional como destino social.
O recorte etĂĄrio e racial aprofunda essa leitura. Entre pessoas brancas com mais de 60 anos, a taxa de analfabetismo Ă© de 11,1%. JĂĄ entre pessoas pretas na mesma faixa etĂĄria, o Ăndice ultrapassa 25%. A juventude tambĂ©m nĂŁo escapa da lĂłgica de negação de direitos: 71,6% dos/as jovens de 14 a 29 anos que nĂŁo completaram o ensino mĂ©dio sĂŁo pretos/as ou pardos/as (PNAD ContĂnua, 2023). O trabalho precoce, a evasĂŁo forçada e o racismo institucional continuam a impedir o pleno acesso Ă educação.
O território, assim como a cor da pele, segue como marcador de desigualdades. A migração forçada vivida por Dona Francisca nos anos 1960, a pé do sul de Minas ao interior de São Paulo, ilustra a omissão histórica do Estado em garantir dignidade às populaçÔes rurais e pretas. Essa realidade, longe de pertencer ao passado, permanece viva.
Segundo a PNAD (2022), quase 70% dos domicĂlios rurais no Brasil nĂŁo possuem acesso adequado a saneamento bĂĄsico. O dado revela que, ainda hoje, morar no campo — especialmente sendo preto/a — significa viver sem os direitos mais elementares assegurados. A exclusĂŁo territorial que empurrou Dona Francisca para a estrada continua sendo um destino imposto a milhares de famĂlias, como herança direta do abandono institucional.
Mas nĂŁo Ă© apenas a ausĂȘncia do Estado que marca esses territĂłrios — Ă© tambĂ©m sua presença violenta. De acordo com a ComissĂŁo Pastoral da Terra (CPT), o Brasil registrou, em 2022, 47 assassinatos em conflitos no campo, sendo a maioria das vĂtimas trabalhadores/as rurais, indĂgenas e quilombolas. Os dados evidenciam que a terra, quando habitada por corpos racializados e empobrecidos, continua sendo tratada como territĂłrio de disputa, extermĂnio e silenciamento forçado.
No campo da memĂłria, a exclusĂŁo tambĂ©m se faz presente. Pesquisa do Instituto Locomotiva (2022) mostra que 75% das pessoas pretas nunca estudaram figuras pretas relevantes na escola. O que Cido denuncia com a caneta, as estatĂsticas confirmam com nĂșmeros: o silĂȘncio Ă© polĂtica pĂșblica. O apagamento Ă© metodologia de ensino.
Esses dados nĂŁo sĂŁo abstraçÔes — sĂŁo rostos, famĂlias, trajetĂłrias interrompidas. SĂŁo a materialização contemporĂąnea de uma herança que se perpetua. Ao iluminar essas ausĂȘncias, MemĂłrias de um boia-fria a professor transforma-se tambĂ©m em denĂșncia ampliada: o que parecia passado Ă©, na verdade, a face persistente de um presente ainda colonizado.
Os dados apresentados neste artigo foram selecionados a partir de fontes pĂșblicas de alta confiabilidade, como IBGE, IPEA, PNAD ContĂnua, CPT, Locomotiva e UFMG. O critĂ©rio de escolha priorizou recortes recentes por raça, territĂłrio e faixa etĂĄria, com o objetivo de refletir com rigor as desigualdades narradas por Cido — e evidenciar que sua histĂłria, longe de ser um caso isolado, traduz estatisticamente o destino social imposto a milhĂ”es. Neste cruzamento entre nĂșmero e memĂłria, o que se revela nĂŁo Ă© apenas a ausĂȘncia de polĂticas pĂșblicas — mas a presença ativa de um sistema de exclusĂŁo.
Do diagnĂłstico Ă reparação: polĂticas pĂșblicas para romper o ciclo
A contundĂȘncia de MemĂłrias de um boia-fria a professor e os dados que a atravessam nĂŁo deixam margem para dĂșvidas: Ă© urgente transformar denĂșncia em reparação. O que se apresenta ao longo da obra Ă© um diagnĂłstico histĂłrico, social e racial que exige respostas Ă altura de sua complexidade. E essas respostas devem vir do Estado — nĂŁo como concessĂŁo, mas como responsabilidade histĂłrica.
Um primeiro passo Ă© fortalecer e efetivar a PolĂtica Nacional de Equidade, Educação para as RelaçÔes Ătnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (PNEERQ), lançada em 2023. Mais do que incluir mençÔes genĂ©ricas Ă diversidade, Ă© preciso garantir financiamento adequado, formação continuada para professores/as, monitoramento efetivo e participação das comunidades pretas e quilombolas na construção curricular. Sem orçamento, a equidade Ă© apenas retĂłrica.
Outro eixo fundamental Ă© a valorização e expansĂŁo da Educação de Jovens e Adultos (EJA) — porta de entrada tardia, mas vital, para milhares de brasileiros/as como Cido. O Censo Escolar (2022) aponta queda contĂnua nas matrĂculas da EJA, revelando o abandono progressivo de uma modalidade que, na prĂĄtica, representa a Ășnica chance de escolarização para milhĂ”es. Tratar a EJA como prioridade Ă© reconhecer trajetĂłrias interrompidas pela exclusĂŁo estrutural — e reabrir caminhos onde antes havia portas trancadas.
TambĂ©m Ă© necessĂĄrio ampliar e proteger os programas de açÔes afirmativas no ensino superior e no serviço pĂșblico. Apesar dos ataques recentes, os dados comprovam sua eficĂĄcia: estudo da UFMG (2022) mostra que estudantes cotistas tĂȘm desempenho acadĂȘmico semelhante ou superior ao dos nĂŁo cotistas, alĂ©m de contribuĂrem para a democratização do currĂculo e das prĂĄticas pedagĂłgicas. Defender as cotas Ă© defender um Brasil mais justo, plural e inteligente.
No campo da memĂłria, o desafio Ă© romper o pacto de esquecimento que ainda silencia as contribuiçÔes pretas e populares Ă histĂłria do paĂs. Investir em centros de memĂłria, museus comunitĂĄrios, acervos digitais e arquivos vivos Ă© uma forma concreta de garantir que histĂłrias como a de Cido nĂŁo permaneçam exceçÔes isoladas. A memĂłria nĂŁo Ă© sĂł lembrança — Ă© reparação, pertencimento e polĂtica pĂșblica.
As propostas contidas nesta agenda nĂŁo partem do zero — elas se ancoram em lutas histĂłricas, em experiĂȘncias locais e em vozes que hĂĄ muito denunciam a exclusĂŁo. MemĂłrias de um boia-fria a professor nos convoca a escutar essas vozes — e, mais do que isso, a transformĂĄ-las em diretriz.
Embora centrada na histĂłria de Cido, a exclusĂŁo retratada em suas memĂłrias se repete em muitas outras partes do paĂs. Realidades semelhantes atravessam as trajetĂłrias de jovens da periferia urbana, de educadores/as quilombolas no MaranhĂŁo, de trabalhadores/as ribeirinhos/as no ParĂĄ e de estudantes indĂgenas no interior do Amazonas. A marginalização da população preta, pobre e do campo nĂŁo Ă© exceção: Ă© arquitetura de um projeto de paĂs. Por isso, a histĂłria contada por Cido precisa ser compreendida como espelho — e tambĂ©m como alerta.
Se o leĂŁo escrever, muda a histĂłria
MemĂłrias de um boia-fria a professor honra a sabedoria do provĂ©rbio africano que inspira sua epĂgrafe: “AtĂ© que o leĂŁo aprenda a escrever, a histĂłria glorificarĂĄ o caçador.” Ao escrever, Cido rompe o ciclo do silĂȘncio e devolve a palavra a quem, por sĂ©culos, teve sua histĂłria contada por outros/as — ou simplesmente apagada. Sua voz, gestada na roça, burilada na sala de aula e alimentada pela esperança, ecoa como testemunho, denĂșncia e convocação.
Mas o livro vai alĂ©m da denĂșncia. Ele propĂ”e uma outra possibilidade de paĂs — um Brasil em que o menino preto, lavrador, perifĂ©rico, nĂŁo precise romper muralhas para viver o que Ă© direito: a educação, a dignidade, o reconhecimento da prĂłpria humanidade. A obra Ă© um grito contra o projeto de marginalização — e, ao mesmo tempo, um chamado Ă reconstrução coletiva.
Talvez por isso, mais do que leitor, eu tenha me sentido parte deste livro desde as primeiras pĂĄginas. Como preto, nordestino, migrante e ex-menino de rua, carrego nas veias marcas que tambĂ©m atravessam a vida de Cido: a luta por educação em territĂłrios onde ela sempre chega por Ășltimo, o olhar desconfiado que recai sobre a juventude preta perifĂ©rica, e a certeza de que a palavra pode ser arma — mas tambĂ©m ponte.
Como educador social, ex-conselheiro tutelar, fotĂłgrafo, designer grĂĄfico e estudante de Psicologia, aprendi que resistir Ă©, muitas vezes, inventar caminhos onde sĂł havia recusa. Foi essa lição que encontrei nas noites de aula da EJA, na Escola Estadual Professora Yolanda Noronha do Nascimento, em SĂŁo Bernardo do Campo — e que reencontro agora, nas pĂĄginas deste livro que Ă© memĂłria viva e projeto de futuro.
Tive a honra de ser aluno do professor Cido — e, anos depois, reencontrĂĄ-lo nĂŁo apenas como ex-aluno, mas como alguĂ©m convidado a contribuir com o projeto grĂĄfico desta obra. Fui citado por ele nos agradecimentos — e isso, para mim, vale mais do que qualquer diploma: Ă© um reconhecimento selado pela confiança e pela luta compartilhada.
Sou LĂ©o Duarte — educador social, ex-conselheiro tutelar, fotĂłgrafo, designer grĂĄfico, estudante de Psicologia e ativista em defesa dos direitos humanos — e tive a honra de caminhar ao lado de Cido. Este artigo Ă©, antes de tudo, um reencontro: entre aluno e mestre, entre silĂȘncio e palavra, entre passado e justiça.
Porque hĂĄ histĂłrias que nĂŁo apenas nos emocionam — nos educam para sempre. Esta Ă© uma delas.
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