Foto: Cristiane Silva
O mar, ainda que retorne mil vezes à margem, beije a areia e abrace a restinga, nunca desfaz o traço de quem passou deixando mais do que pegadas
Por Léo Duarte - @leoduarte.sbc
ou: onde a maré encosta no coração da gente
No Dia Mundial dos Oceanos, quando o tempo amanhece mais úmido de sentidos, a Praia do Itaguaré, em Bertioga, não era só cenário: era altar de reencontro. Ali, entre o murmúrio do mar e o sussurro da mata, e da rasteira restinga, trinta e cinco corpos acordaram junto com o sol para tecer gestos em silêncio gritante numa rede de esperança e socorro.
Parte do chão que pisávamos era tomado pela restinga — vegetação que, embora pareça frágil como lembrança antiga, resiste com a força de quem enfrenta tempestades humanas. A areia, aparentemente silenciosa, acumulava não apenas os resíduos arrastados pelas correntes, mas também os equívocos da humanidade revelados nas águas da indiferença, denunciados pelos sussurros da nossa própria natureza. A limpeza que se iniciava ali não era apenas uma faxina: era ritual. Um gesto que nascia não de ordens, mas da escuta. E escutar, naquele espaço, era mais que ato — era linguagem. A mais urgente de todas. Uma leitura do território feita com os pés descalços, com as mãos abertas e com o coração disposto a reaprender a presença e a reencontrar seus amores com a existência.
Cada pessoa trouxe algo que não cabia em sacos: trouxe o avô dentro de gestos de sabedoria; a avó, nos olhos de longas caminhadas; a infância, nas pegadas curiosas. Trouxe histórias embrulhadas em silêncio — e deixou palavras na beira do mar. A praia, então, desaprendeu de ser paisagem. Virou corpo coletivo: com pulsações próprias, pele compartilhada, espanto comum.
Não houve liderança humana que ordenasse a nossa presença. O chão chamou, o ar atraiu e as águas nos receberam. E aqueles que escutam o chamado da nossa composição sabem: a origem não ordena — acolhe, convida, convoca para si.
E quando os sacos se encheram das partes que chamamos de lixo, os corações também se encheram de futuro e esperança. Porque ali se compreendeu: cuidar do oceano é reaprender a pertencer. É reconhecer que todo território tem alma — ou espírito. E que há marés que não recuam: avançam serenas, firmes, com nados atentos na direção daquilo que, no fundo, entendemos como existência.
Foto: Cristiane Silva
ou: o que o mar devolve quando o mundo não quer mais ver
À medida que os passos avançavam, os sacos se enchiam e os braços cansavam, uma verdade silenciosa emergia dentro de nós: a coleta era apenas a camada visível. Por trás da espuma, entre os grãos de areia lavada e os rastros de sal, o mar devolvia tudo o que o sistema, por descaso ou conveniência, tentou esconder. Não era só sobre o lixo: era sobre as escolhas, os excessos, as ausências. E agora, expostas ali na beira do mundo, essas verdades voltavam com a força de uma maré que recusa o esquecimento.
Foram 2.061 objetos — somando 225,985 kg de tudo aquilo que nunca deveria ter chegado ali. Garrafas vazias, agora sem sede e sem sentido. Tampinhas dispersas como rastros de um consumo que não termina no gole, mas se espalha. Boias e redes que, em vez de salvar ou sustentar através da pesca, apenas aprisionam. No entanto, o que mais pesava não estava nos sacos que se enchiam com os objetos reencontrados. Pesava nos olhos. Pesava no gesto contido. Pesava no perceber que o mar não apenas recebeu — o mar também devolve tudo aquilo que tentamos varrer para debaixo do tapete.
Foto: Cristiane Silva
Esses achados não eram só dejetos. Eram cartas não enviadas — mas devolvidas. Cada item era um pequeno espelho rachado daquilo que chamam de civilização. Um grito sussurrado de que alguém deixou sua bagagem para trás.
Não era só a areia que estava suja. Era o projeto de mundo que se revelava encardido. Um modelo que não sabe cuidar, que ensina a descartar — inclusive gente.
E, naquele instante, não havia neutralidade nos dados. Só denúncia: das faltas que se repetem, da educação que não chega, da política que desvia o olhar. Porque, antes de ser reciclável, todo lixo é revelador e todo mundo é revelado.
Foto: Cristiane Silva
Educação ecológica como prática libertadora
ou: o saber que brota do chão e se espalha como semente ao vento
Naquela manhã de sol morno, mas de alta temperatura emocional, a Praia do Itaguaré virou escola — sem paredes de alvenaria. O mutirão, mais do que ação, foi lição. E ali, entre o simbólico e o concreto, entre o saco de lixo e o fato, aconteceu o que só acontece quando o amor pela existência é maior que a pressa de simplesmente passar pela vida.
Havia gente recolhendo pedaços de mundo — mas também havia olhos anotando perguntas no caderno invisível do coração. Crianças, jovens, adultos e anciãos partilharam o tempo e o chão, tecendo um saber que não veio de cima, mas que nasceu do toque, do peso, da dúvida.
Foto: Cristiane Silva
A areia virou página, o vento virou voz, e cada garrafa vazia ensinava mais do que qualquer cartilha.
Com a balança presa ao galho de uma árvore — como quem pendura esperanças no tempo. Cada grama pesava mais do que o próprio material: carregava o peso da existência humana na Terra, a história de um consumo irresponsável que insiste em esquecer os limites do planeta.
Registraram tipo, cor, origem — sim. Mas também escutaram os sussurros dos brinquedos partidos, conversaram com os restos esquecidos, decifraram as palavras que os resíduos do consumo não tiveram tempo de pronunciar.
Era dado — e era desabafo.
Era ciência com cheiro de sal.
Era arte em estado de nascente.
Era conhecimento com cheiro de chão molhado e voz de rede estendida.
Foto: Cristiane Silva
Parte do que foi retirado não voltou ao esquecimento. Virou arte com raiva na beleza do nosso tempo. Virou instalação crítica. Virou grito visual. Lixo transformado em mensagem. Sucata que sussurra verdades de uma triste realidade. Plástico que aponta para dentro, muitas das vezes dentro de animais.
A educação ali não era dever, era desejo. Não era pirâmide, era roda. Ninguém ensinou tudo.
Ninguém aprendeu só. O saber se fez no corpo, no susto, na pergunta que fica.
Porque ali, naquela restinga entre maré e mata, o que se aprendeu não coube em apostila: Coube nos olhos brilhando, nas mãos sujas de sentido, e na certeza serena de que aprender é, antes de tudo, sentir. E que sentir — de verdade — é o primeiro passo para transformar.
Fotos: Léo Duarte
O território como quem chama pelo nome
Itaguaré não foi cenário — foi pele, foi voz, foi corpo presente. Ali, a restinga não era apenas ecossistema: era avó da terra, guardiã antiga, biblioteca viva de sabedoria silvestre. Pisar na areia era como atravessar um livro que sussurrava histórias a cada folha seca e concha quebrada.
Quem veio, veio não porque foi chamado por alguém — mas porque foi chamado pela própria terra. E quem escuta o chamado do território, já não volta igual: passa a se reconhecer nele.
Na curva do mutirão, não se encontraram apenas mãos com luvas: Encontraram-se gerações inteiras, saberes populares e científicos, gente que lê o chão como se lê o céu: com olhos de quem pertence.
Foto: Cristiane Silva
Ali, cada gesto era também reza. Cada passo, uma lembrança de que o chão não é “fora”, é extensão do corpo — e que cuidar do território é cuidar do próprio nome.
Foi nesse entrelaço que floresceu o sentido mais profundo da resistência: aquele que não grita, mas semeia. Que não precisa de placa, mas deixa rastro. E ali, na partilha de sombra, de palavra, de silêncio, ergueu-se o que chamamos de comum.
ou: o que fica depois que o mar recua
O mutirão em Itaguaré terminou sem fogos, mas com um silêncio cheio de muitos sentidos. A areia estava mais limpa, os sacos pesados de resíduos e os dados registrados em tabelas, mas o que realmente ficou não coube em número nenhum. Ficou nos corpos atravessados pela experiência, nos olhos que agora enxergam diferente, nas mãos que aprenderam que tocar o território é também ser tocado por ele.
Recolher uma garrafa enterrada, um isqueiro enferrujado ou um pedaço de rede não era apenas limpar: era romper um ciclo de esquecimento. Era dizer ao mundo — ainda que em sussurro — que há outros jeitos de estar. Que cuidar pode ser ato revolucionário. Que gesto pequeno é semente de floresta.
Foto: Léo Duarte
Ali, onde o mar beija a mata e o vento sopra nomes antigos, aconteceu mais do que coleta: aconteceu vínculo. Cada pessoa que pisou na areia levou um pouco de oceano no peito e deixou um pouco de si no chão. Porque quem se entrega ao cuidado, volta transformado. E volta disposto a transformar.
Naquele fim de manhã, ninguém discursou, mas muita coisa foi dita. Com os olhos, com os gestos, com os silêncios. O que ficou foi memória viva, registro invisível, um tipo de cicatriz que não dói — mas ensina.
E se algum legado se formou ali, não foi monumento de pedra. Foi sopro no cotidiano. Foi decisão íntima de fazer diferente. Foi passo dado com consciência. Porque transformar o mundo não exige grandes palanques — exige encontros. E vontade de caminhar junto.
Foto: Cristiane Silva
Foto: Cristiane Silva
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Sou Léo Duarte, radicalizado em São Bernardo do Campo (SP). Psicólogo em formação, ex-conselheiro tutelar, educador social, fotógrafo, designer e ativista dos direitos humanos. Atuo com projetos socioambientais e comunicação popular. Acredito que certos encontros atravessam o tempo, que há gestos que viram legado e que algumas marés chegam não apenas para limpar a praia, mas também para devolver o que tentaram esconder — e revelar o que há de mais profundo na vida: o pertencimento e os reencontros.
Me acompanhe também pelo Instagram: @leoduarte.sbc
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