O debate em torno da redução da maioridade
penal voltou à agenda pública nos últimos dias, quando a Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados desengavetou
a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos.
Na pauta da CCJ desde o dia 17 de março, a
PEC 171/93 ainda não foi votada. De lá para cá, o debate ganhou destaque na
cobertura midiática. De blogueiros à grandes redes nacionais de televisão
abordam o tema. Nada mais natural. Mas, qual a real contribuição da mídia para
o debate da redução da maioridade penal?
Antes de entrar no assunto, é preciso ter em
mente que a atual composição do Congresso Nacional é considerada a mais conservadora desde
a redemocratização. A bancada da bala, com seus 55 deputados, nunca antes esteve
tão consolidada. De acordo com levantamento do Departamento Intersindical de
Assessoria Parlamentar (Diap), o número de parlamentares policiais ou próximos
desse segmento, como apresentadores de programas de cunho policialesco, cresceu
de forma alarmante. Nas pautas defendidas, a revisão do Estatuto do
Desarmamento, o recrudescimento penal e a redução da maioridade.
A grande (des)contribuição midiática
"E você? [repórter] Não tenho o que falar não. Não fui
eu, não. [jovem acusado e facilmente identificável pela reportagem] Garoto
que chega a mandar até alô (...) porque nega qualquer envolvimento, mas o fato
é que tratam-se de dois adolescentes, segundo a polícia, de alta periculosidade.
Pessoas que apresentam sim risco para a comunidade, que estavam à solta.
Infelizmente, por serem menores, o período em que eles vão passar (privados
de liberdade) é muito curto. [repórter]"
- Programa Cidade 190 (de Fortaleza, CE), da
emissora TV Cidade.
"Ele tem apenas dezessete anos. De
aparência franzina, é considerado pela polícia como um adolescente infrator dos
mais perigosos do bairro do Guamá, periferia de Belém. Conhecido com Joãozinho
é acusado de aterrorizar a população da área e pratica em média quatro assaltos
por dia, para ele o tipo de arma usada é o que menos importa. [repórter]
- Programa Barra Pesada, do Diário Online, da
emissora RBA.
Os recortes transcritos acima nos dão um
claro panorama de como a mídia historicamente aborda notícias relacionadas a
adolescentes acusados da autoria de atos infracionais. Nos programas
policialescos (ambos os casos citados acima), a abordagem é conhecida e as
violações também: discurso de ódio, criminalização da pobreza, exposição
indevida e identificação de adolescentes em conflito com a lei, ridicularizarão
de vítimas e acusados, julgamento antecipado, incitação à violência.
Os programas policiais, autointitulados
jornalísticos, enfatizam uma suposta “alta periculosidade juvenil” e nos
bombardeiam com manchetes sobre atos infracionais praticados com alto grau de
violência e atentados contra a vida, sem apresentar as reais estatísticas da
violência, ou muito menos problematizá-la.
As violações de direitos nestes programas vêm
gerando uma maior incidência de órgãos fiscalizadores como o Ministério
Público, que ajuizou em diferentes estados Termos de Ajustamento de Conduta e
Ações Civis Públicas contra as emissoras responsáveis por sua veiculação.
Mas e quando esta abordagem não é
predominante apenas nos programas policias? E quando ela é prerrogativa também
dos noticiários locais e nacionais das grandes emissoras de TV? Como esquecer o
esdrúxulo comentário de Rachel Sheherazade no SBT Brasil?
E aos defensores dos Direitos Humanos que
se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: “faça um
favor ao Brasil: adote um bandido!”.
[âncora, Rachel Sheherazade]
- Programa SBT Brasil, emissora SBT.
A eficiência midiática em provocar uma
sensação de pânico na população é incontestável! Os adolescentes são retratados
como os algozes, responsáveis pela onda de violência no País. Quando e se
apreendidos, são logo liberados pela “aberração que é o Estatuto da Criança e
do Adolescente”, que serve apenas para "proteger os delinquentes juvenis".
“Vão para a engorda”, eles bravejam. Legitimar uma alteração na legislação vira
tarefa fácil nessa conjuntura...
Mas, quando vemos a mídia debater com
profundidade a conflitualidade e a violência, ou retratar ou dados sem
distorções ou omissões?
O que a mídia omite sobre a redução
A maioria dos atos infracionais que levam a
medidas de privação de liberdade de adolescentes não envolve crimes com alto
grau de violência e atentados contra a vida. Pesquisa do Conselho Nacional de
Justiça, de 2012, revela que os delitos cometidos por adolescentes são
predominantemente de roubo, furto e tráfico (aproximadamente 80% do total).
Os adolescentes, na realidade, são mais
vítimas do que autores de violência. O último Índice de Homicídios na
Adolescência (IHA), realizado em 2012 nas cidades com mais de 100 mil
habitantes, estimou que mais de 42 mil adolescentes poderão ser
vítimas de homicídios até 2019.
De acordo com os dados, para cada grupo de
mil pessoas com 12 anos completos em 2012, 3,32 correm o risco de serem
assassinadas antes de atingirem os 19 anos de idade, taxa que representa um
aumento de 17% em relação a 2011. A IHA mostrou ainda que adolescentes
negros ou pardos possuem aproximadamente três vezes mais probabilidade de serem
assassinados do que adolescentes brancos. De acordo com os dados das
pesquisas: “Mapa da Violência 2012 e de 2013” em 2011, a vitimização dos jovens
negros também aumentou substancialmente, de 71,7%, em 2002, para 154%, em 2010.
O Brasil já possui a quarta maior população
carcerária do mundo e o investimento de nossas políticas públicas segue na
linha de mais recrudescimento. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(Sianse) é absolutamente violador de direitos básicos fundamentais. Exemplo
disso é uma recente denúncia formulada pela Associação Nacional dos
Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), Fórum Permanente
das ONGs de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes do Ceará (Fórum DCA)
e Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), denunciando
o Estado Brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos por graves
violações nas Unidades Socioeducativas do Ceará. Relatos de torturas
sistemáticas no interior das Unidades Socioeducativas, superlotação em todas as
Unidades, denúncia de estupro cometido por agente público e até episódios de
dopagem coletiva.
Finalmente, não há atualmente qualquer estudo
que comprove que o recrudescimento de sanções aplicadas a adolescentes
diminuiria os índices de violência no Brasil ou mesmo geraria uma maior
sensação de segurança para a população. O que está em risco com a aprovação da
PEC 171/93 é um imensurável retrocesso para a sociedade brasileira, que sequer
chegou a conseguir implementar integralmente o ECA e a lei 12.594/2012 (que
institui o Sinase).
Para engrossar o caldo: interesses em
jogo
Vale lembrar que vários dos programas
policiais que se arvoram na defesa do rebaixamento da idade penal são comandas
por parlamentares que integram a bancada da bala. Mais uns tantos deputados e
senadores são concessionários do serviço público de rádio e TV, muito embora o
artigo 54 da Constituição Federal proíba isso. São muitos interesses em jogo.
Basta ver o ataque à qualquer tentativa de debater a necessidade de avançarmos
na regulamentação da comunicação no Brasil, à exemplo do que já fizeram tantos
outros países.
Quem acompanhou as sessões da CCJ que tiveram
como pauta a PEC 171/93 deve ter percebido como o debate sobre a redução
da maioridade em si foi escanteado. Não bastasse a superficialidade e as distorções
midiáticas, os parlamentares não chegaram a fazer um debate aprofundado sobre o
tema. Nada perto disso. A coisa toda acabou virando uma grande queda de braço
entre oposição X situação. O acirramento da polarização em curso no País pode
chegar a uma concretude em breve: um gigantesco e imensurável retrocesso
para os direitos humanos dos adolescentes.
*Natasha Cruz é jornalista e integrante do
Intervozes
FONTE: http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/qual-a-contribuicao-da-midia-para-o-debate-da-reducao-da-maioridade-penal-7054.html
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