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A violĂȘncia contra mulher e o afastamento do agressor


A Constituição Federal, em seu art. 226, § 8Âș, impĂ”e ao Estado assegurar a assistĂȘncia Ă  famĂ­lia na pessoa de cada um dos que a integram, definindo meios para impedir a violĂȘncia no Ăąmbito de suas relaçÔes. Desse modo, a Lei 11.340/06 introduz no ordenamento jurĂ­dico a proteção Ă  mulher, estabelecendo no seu art. 1Âș os objetivos constantes da norma, ou seja, a criação de mecanismos capazes de coibir e prevenir a violĂȘncia contra a mulher, fixando medidas de assistĂȘncia e proteção Ă s mulheres em situação de violĂȘncia domĂ©stica e familiar.

NĂŁo se trata de preocupação inĂ©dita, pois precedida de outros ordenamentos que tentavam trilhar algum tipo de proteção Ă  mulher, tais como a Lei 10.455/02 que acrescentou o parĂĄgrafo Ășnico do art. 69, da Lei 9.099/95, e consiste em uma medida cautelar que afasta o agressor do lar em caso de violĂȘncia domĂ©stica; ou atĂ© mesmo a criação de um subtipo de lesĂŁo corporal leve, decorrente da violĂȘncia domĂ©stica, acrescido ao art. 129 pela Lei 10.886/04, aumentando a pena mĂ­nima de 3 para 6 meses.

A Lei Maria da Penha revoluciona o ordenamento jurĂ­dico ao determinar de forma expressa a proteção da mulher no Ăąmbito domiciliar, traduzindo a tutela do Estado sobre a violĂȘncia que permanece oculta da sociedade e sobre o indivĂ­duo, muitas vezes, mais fraco nas relaçÔes afetivas. A norma abrange nĂŁo sĂł a violĂȘncia fĂ­sica, mas a moral e psicolĂłgica, prevendo ainda, o imediato afastamento do agressor do seio domiciliar.

Define inclusive que cabe ao Poder PĂșblico desenvolver polĂ­ticas que visem garantir os direitos humanos da mulher no Ăąmbito das relaçÔes domĂ©sticas e familiares, protegendo de toda forma de negligĂȘncia, discriminação, exploração, violĂȘncia, crueldade e opressĂŁo. TambĂ©m lhe compete criar condiçÔes necessĂĄrias para o efetivo direito Ă  vida, Ă  segurança, Ă  saĂșde, Ă  moradia, ao acesso Ă  justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, Ă  dignidade, ao respeito e Ă  convivĂȘncia familiar e comunitĂĄria.

Entende-se por violĂȘncia domĂ©stica e familiar qualquer ação ou omissĂŁo baseada no gĂȘnero que lhe cause morte, lesĂŁo, sofrimento fĂ­sico, sexual ou psicolĂłgico e dano moral ou patrimonial no Ăąmbito domĂ©stico. A norma estabelece que unidade domĂ©stica compreende o espaço de convĂ­vio permanente de pessoas, com ou sem vĂ­nculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; enquanto Ăąmbito familiar abrange a comunidade formada por indivĂ­duos que sĂŁo ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa. E inova consideravelmente ao completar que a relação Ă­ntima de afeto independe de coabitação e da orientação sexual, estendendo a proteção ao casal de namorados, desde que comprovada a convivĂȘncia duradoura (STJ, CC 91.979-MG, Rel. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 16/02/2009).

Ao tratar do procedimento, a Lei 11.340/06 faculta Ă  UniĂŁo (no Distrito Federal e TerritĂłrios) e aos Estados a criação dos Juizados de ViolĂȘncia DomĂ©stica e Familiar contra a Mulher, que sĂŁo ĂłrgĂŁos da Justiça OrdinĂĄria com competĂȘncia cĂ­vel e criminal responsĂĄvel pelo processo, julgamento e execução das causas decorrentes da prĂĄtica da violĂȘncia contra a mulher. Ainda, a prĂłpria norma, em seu art. 41, prevĂȘ que independentemente da pena prevista, nĂŁo se aplica a Lei 9.099/95 aos crimes previstos em seus dispositivos.

Nesse sentido, a Desembargadora Jane Silva, convocada do TJ/MG para o Superior Tribunal de Justiça, leciona no HC 106805/MS que: "a Lei Maria da Penha deixa claro que a Lei nÂș 9.099/95 nĂŁo se aplica por inteiro, isso porque os escopos de uma e de outra sĂŁo totalmente opostos. Enquanto a Lei dos Juizados Especiais procura evitar o inĂ­cio do processo penal que poderĂĄ culminar com a imposição de uma sanção ao agente do crime, a Lei Maria da Penha procura punir, com maior rigor, o agressor que age Ă s escondidas nos lares, pondo em risco a saĂșde de sua prĂłpria famĂ­lia."

Em contrapartida, enquanto nĂŁo forem criados nos Estados o ĂłrgĂŁo especial de julgamento da violĂȘncia contra a mulher, cabe Ă s varas criminais, sendo garantido o direito de preferĂȘncia destas, as competĂȘncias cĂ­veis e criminais para conduzir o processamento e demais atos nos processos que tratam da matĂ©ria da Lei Maria da Penha (art. 33).

Medidas cautelares na Lei Maria da Penha

As tutelas cautelares foram criadas a fim de neutralizar os efeitos malĂ©ficos do tempo, protegendo o direito atĂ© o fim do processo, sem satisfazĂȘ-lo de imediato.

O art. 796, Código de Processo Civil, preceitua que o procedimento cautelar pode ser instaurado antes ou no curso do processo principal e deste é sempre dependente. Em vista disso que se extraem as características essenciais da tutela cautelar, ou seja, a sua temporariedade (pois perdura o tempo necessårio à satisfação do que se propÔe ou até a resolução da causa) e instrumentalidade (é instrumento de proteção de outro instrumento).

Na tutela cautelar, ensina Adroaldo Furtado FabrĂ­cio, faz-se o exame da pretensĂŁo com o "fito Ășnico de apurar se ela Ă© plausĂ­vel (presença do fumus boni iuris) e se a demora inerente Ă  atividade processual pode por em risco o seu resultado prĂĄtico (peticulum in mora) (...). A cautela sĂł dĂĄ ao autor a expectativa favorĂĄvel da efetiva fruição do direito no futuro. (...) O que se retira do rĂ©u mediante cautela permanece sob custĂłdia judicial, sem se transferir de imediato ao autor".

Misael Montenegro Filho afirma que a medida cautelar pode ter por escopo a proteção de uma pessoa, uma coisa ou uma prova, devendo se mostrar Ăștil quanto ao processo principal, de modo que em sua lista, nĂŁo exaustiva, se encontram a proteção aos alimentos provisionais, o afastamento de um dos cĂŽnjuges da morada do casal e a guarda dos filhos – compatĂ­veis com as enunciadas na Lei 11.340/06. Tais medidas podem ser concedidas, em caso de urgĂȘncia, sem a audiĂȘncia do requerido (art. 889, parĂĄgrafo Ășnico, CPC).

A Lei Maria da Penha traz em seu art. 22 as medidas protetivas de urgĂȘncia que obrigam o agressor e estabelece que, constatada a pratica de violĂȘncia domĂ©stica ou familiar contra a mulher, o juiz poderĂĄ aplicar ao agressor as seguintes medidas de urgĂȘncia, entre outras: (a) suspender a posse ou restringir o porte de armas; (b) afastar do lar, domicĂ­lio ou local de convivĂȘncia com a ofendida; (c) proibir determinadas condutas, entre as quais: aproximação ou contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas, fixando limite mĂ­nimo de distĂąncia ou qualquer meio de comunicação e limitação de presença em determinados lugares a fim de preservar a integridade fĂ­sica e psicolĂłgica da ofendida; (d) restrição ou suspensĂŁo de visitas aos dependentes menores; (e) alimentos provisionais ou provisĂłrios.

Ainda, em seu art. 23 a norma resolve que as medidas protetivas de urgĂȘncia Ă  ofendida, as quais nĂŁo afastam outras necessĂĄrias: (a) encaminhamento ao programa de proteção ou atendimento; (b) recondução ao respectivo domicĂ­lio, apĂłs o afastamento do agressor; (c) afastamento do lar, sem prejuĂ­zo dos direitos relativos aos bens, guarda dos filhos e alimentos; (d) separação de corpos.

A fim de exercer a proteção sobre os bens da sociedade conjugal ou da propriedade particular da mulher, o juiz poderå determinar liminarmente: (a) restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor; (b) proibição temporåria da celebração de contratos de compra, venda e locação de propriedade comum; (c) suspensão de procuraçÔes conferidas ao agressor; (d) prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da agressão.

Ao expor as formas de proteção enunciadas pela Lei o legislador foi conciso ao informar que essa proteção é a mais ampla possível, de modo que cabe ao juiz, no caso concreto, verificar a necessidade e utilidade da medida pleiteada, quando não se encaixa nas modalidades acima numeradas; bem como, definir se a tutela deverå se aplicada de imediato ou em momento que melhor convir aos interesses da vítima da agressão doméstica.

CompetĂȘncias para as tutelas cautelares

O art. 800 do CĂłdigo de Processo Civil explica que as cautelares, quando preparatĂłrias, serĂŁo requeridas ao juiz competente para conhecer da ação principal. EntĂŁo, sendo a medida inerente Ă  famĂ­lia, separação, alimentos ou guarda serĂĄ a tutela de competĂȘncia da vara do juĂ­zo da famĂ­lia, nos termos do referido dispositivo.

Muitas das tutelas enumeradas acima dizem respeito Ă  proteção cautelar proferida pelos juĂ­zos cĂ­veis, todavia, a Lei Maria da Penha chamou para os Juizados de ViolĂȘncia DomĂ©stica e Familiar contra a Mulher ou Ă  vara criminal a competĂȘncia cĂ­vel e penal praticada contra a mulher no Ăąmbito domiciliar.

Desse modo, enquanto nĂŁo criado o juizado, a competĂȘncia cĂ­vel relacionada a essas tutelas cautelares seriam do juĂ­zo criminal. Essa Ă© uma questĂŁo a ser debatida, pois se a cautelar requer um processo posterior ou que seja incidental, pode-se atĂ© mesmo dizer que a propositura de uma medida cautelar em face da violĂȘncia domĂ©stica tornaria prevento o juĂ­zo criminal para uma futura ação de separação.

Para Arnaldo Camanho de Assis, a ação cautelar nĂŁo se confunde com a medida protetiva de urgĂȘncia. Enquanto a primeira "sugere a necessidade de um processo posterior – ou em curso – cujo resultado mereça ser protegido; a segunda afasta a necessidade de existĂȘncia de um processo em curso – a partir do que se lhe pudesse emprestar natureza "cautelar incidental" – ou de instauração de um processo posterior. Alega que a medida protetiva tem natureza desprovida de conteĂșdo cautelar, nĂŁo se prestando a garantir a eficĂĄcia do resultado de um processo, somente evitar a "ocorrĂȘncia de situação concreta ou iminente de violĂȘncia domĂ©stica e familiar contra a mulher".

Por outro lado, hĂĄ ainda que se apontar a posição do Procurador de Justiça BasĂ­lio Elias De Caro, seguida no Conflito de CompetĂȘncia nÂș 2007.008627-6 (TJSC, Rel. Joel Figueira Junior, DJ 18/03/08), vez que no momento em que o legislador utilizou no art. 33 a expressĂŁo "causas", e nĂŁo "crimes", quis estabelecer por meio da cumulatividade a competĂȘncia da ĂĄrea de violĂȘncia domestica e familiar. Afirma que "uma interpretação razoĂĄvel da norma conduz a ilação da plena possibilidade de ‘atribuir-se Ă s Varas Criminais, competĂȘncia provisĂłria para: julgamento de crimes praticados com violĂȘncia domĂ©stica e familiar contra a mulher; b) julgamento das medidas de proteção (art. 22 a 24 da LMP); realização de conciliaçÔes (cuja execução se daria nas Varas CĂ­veis ou da FamĂ­lia)’ (Op. Cit., p 110)".

Como visto, a matĂ©ria ainda estĂĄ sendo discutida no Ăąmbito dos Tribunais e como toda inovação legislativa, a Lei Maria da Penha tambĂ©m traz nos seus dispositivos algumas controvĂ©rsias, apesar de ser um marco na proteção da violĂȘncia domĂ©stica e familiar. Enquanto a posição que melhor orienta essa disputa e que parece tomar contornos Ă© a de que, caso ainda nĂŁo tenha havido o crime de violĂȘncia ou ameaça de violĂȘncia contra a mulher a medida cautelar deverĂĄ ser requerida perante a Vara CĂ­vel ou de FamĂ­lia e SucessĂ”es; do contrĂĄrio, caso a agressĂŁo ou iminĂȘncia jĂĄ tenha se instaurado, a tutela deverĂĄ ser requerida nos Juizados de ViolĂȘncia DomĂ©stica e Familiar contra a Mulher ou Ă  Vara Criminal (na falta daquela).

Camila Daros Cardoso
Advogada. Pós-graduada em Direito Processual Civil e Comércio Internacional e pós-graduanda em Direito Previdenciårio


Fonte: http://jus.com.br/artigos/18556/competencia-para-as-medidas-cautelares-civeis-na-lei-maria-da-penha

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